Millôr: o humor como forma de indignação
A história contemporânea do país revista pela ironia corrosiva de um dos maiores intelectuais brasileiros, nascido há um século
“Todo homem nasce original e morre plágio”
Contradizendo uma de suas mais célebres frases, Millôr Fernandes chegou ao final da vida em março de 2012, aos 88 anos, deixando uma obra única e singular. Hábil no jogo de palavras e dono de um vasto repertório cultural, Millôr carregava sua indignação com generosas doses de irreverência, evidenciando os contornos mais caricatos da vida política e da sociedade brasileira. Deixa como legado uma obra que é a própria definição de um termo tão desgastado atualmente: o humor inteligente.
Sua obra é fruto das mais diferentes formas de expressão. Foi tradutor de autores como William Shakespeare e Bertolt Bretch, autor de premiadas peças de teatro, e notabilizou-se como cartunista e cronista. Como frasista, tinha formidável capacidade de sintetizar com precisão os mais banais aspectos do cotidiano, mas também complexas relações políticas, e você pode ver isso nos intertítulos deste texto, todos com frases de Millôr. Avesso a lugares-comuns, gostava de desconstruir expressões consagradas. Aforismo como “Divagar e sempre” e “lutar pela paz é como roubar pela honestidade” refletem esse prazer em esculhambar o pensamento estabelecido. Suas charges mais conhecidas são aquelas que jogam com a interação entre ilustração e texto, resultando nas caóticas e anárquicas composições que caracterizaram seu estilo.
“Livre pensar é só pensar”
Sempre disposto a questionar os valores da sociedade e confrontar o poder, Millôr acabou se tornando um ícone de defesa da liberdade de expressão no país. Sua trajetória se confunde com a própria luta contra a censura. Iniciou a atividade profissional em O Cruzeiro, a maior revista da época, em 1938, como contínuo, aos 15 anos, e nela desenvolveu sua carreira, até conquistar a própria seção de humor, o Pif-Paf. Deixou a revista em 1963, quando foi censurado pela publicação. Pressionada pelos leitores católicos conservadores, a direção de O Cruzeiro voltou-se contra Millôr, que escrevera uma versão nada convencional da história de Adão e Eva.
No ano seguinte, em plena ditadura militar, transformou sua antiga seção na revista Pif-Paf, logo barrada pela censura do regime. Em 1969, ao lado de nomes como Ziraldo, Jaguar e Henfil, lançou O Pasquim, um dos mais influentes jornais da imprensa alternativa (veja adiante). Millôr também atuou em outros veículos da imprensa brasileira, como as revistas VEJA e IstoÉ, o Jornal do Brasil e o jornal O Estado de S. Paulo.
Onde quer que tenha trabalhado, sempre usou o humor como meio para expressar seu ceticismo e sua indignação. Debochou de ditadores e presidentes eleitos, pondo em prática aquilo que se consolidou como a sua máxima: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.” Nesta matéria, você confere acontecimentos marcantes da história do Brasil na segunda metade do século 20 sob a ótica de Millôr e vai notar que, de Getúlio Vargas a Lula, seu humor corrosivo não poupou ninguém.
REPÚBLICA DEMOCRÁTICA (1946-1964)
Entre o regime autoritário do Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945), e a ditadura militar de 1964, o país viveu um breve período democrático, ainda que bastante conturbado. Os mandatos presidenciais foram dominados por governos populistas, marcados pela figura de um líder paternalista voltado para as massas populares. As forças nacionalistas e as conservadoras viviam em constante tensão. Essa polarização ameaçava a ordem democrática e se exacerbou durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954).
“Vitorioso nas eleições, Getúlio Vargas volta ao poder. Continuamos mais para Tribunal de Exceção do que para direitos humanos”
Para Millôr, a volta de Getúlio ao poder significava um recuo no processo democrático. O “Tribunal de Exceção”, que ele menciona acima, diz respeito a um tipo de corte constituída em estados ditatoriais, nos quais não há direito pleno do réu à defesa. Eleito presidente em 1950, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Getúlio manteve o caráter nacionalista marcante em sua vida política. O auge dessa orientação foi a campanha “O petróleo é nosso”, que em 1953 deu base ao estabelecimento do monopólio estatal na área petrolífera e à criação da Petrobras.
Essa diretriz entrou em choque com os interesses dos conservadores, liderados pela União Democrática Nacional (UDN). Em 1954, um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor udenista, provocou a morte de um major da Aeronáutica. Com a comprovação do envolvimento de Gregório Fortunato, chefe da guarda presidencial, o governo de Getúlio se fragilizou. Pressionado e abandonado politicamente, Getúlio se suicidou, em 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete (então a sede da Presidência), no Rio, causando grande comoção popular. Em sua carta de despedida, eternizou a frase: “Deixo a vida para entrar na história”.
“Eleito, Juscelino promete 50 anos em 5 e começa imediatamente a construção de Brasília. Pela primeira vez, ferro, aço, pedras e tijolos viajam de avião”
Getúlio foi sucedido pelo vice, João Café Filho. As eleições de 1956 terminam com a vitória de Juscelino Kubitschek, da coligação entre o PTB e o Partido Social Democrático (PSD). Seu governo foi pautado pelo discurso desenvolvimentista, que tinha como lema “50 anos (de progresso) em 5 (de governo)”. O marco do governo JK (1956-1960) foi a construção de Brasília, a nova capital federal. Na frase acima, a provocação de Millôr é dirigida aos altos custos da empreitada de transferir a capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central. De modo geral, a política econômica de JK ocasionou forte endividamento externo, associado à alta da inflação e à consequente perda de poder de compra dos salários.
“Depois de Juscelino, entra Jânio Quadros. Sai um doido varrido, entra um doido varrendo”
Nas eleições de 1960, o candidato do Partido Trabalhista Nacional (PTN), Jânio Quadros, apoiado pela UDN, venceu a disputa. Tinha como símbolo de campanha uma vassoura para “varrer a corrupção” – daí a referência de Millôr, na frase acima, à entrada de um “doido varrendo”. Jânio combinou uma política interna conservadora com uma política externa independente da linha ditada pelos Estados Unidos, promovendo uma aproximação com países comunistas, como União Soviética, China e Cuba. Com apenas sete meses de governo, tentou uma manobra para impor um governo autoritário, sob seu comando: renunciou em agosto de 1961, na esperança de que a população e os militares exigissem sua volta, com mais poderes. Nenhuma força social, contudo, mobilizou-se a seu favor.
“Quando os militares falam que não vão se meter em política, já estão se metendo”
No lugar de Jânio, entrou o vice, João Goulart (PTB), considerado de esquerda. Para aceitarem que Jango, como era conhecido, assumisse o poder, os conservadores – com o apoio da cúpula militar – fizeram uma manobra no Congresso para instituir o parlamentarismo e reduzir os seus poderes. No entanto, em 1963, o presidencialismo foi restabelecido, e Jango retomou as rédeas da nação. Diante de uma grave crise econômica, Jango lançou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social e as reformas de base (agrária, bancária, eleitoral e fiscal), que enfrentaram resistência no Congresso. A tensão aumentou: manifestações populares apoiavam o governo, enquanto a oposição acusava Jango de abrir caminho ao comunismo, o fantasma do período da Guerra Fria (1945-1991). A queda de braço continuou até que a cúpula militar, com o apoio diplomático externo dos Estados Unidos, deu um golpe de Estado e destituiu Jango, em 31 de março de 1964. Tinha início o regime militar.
DITADURA MILITAR (1964-1985)
Com o pretexto de combater a ameaça comunista e a crise econômica, os militares tomaram o poder prometendo ficar pouco tempo. Mas a ditadura durou 21 anos, período em que o Brasil viveu sob um regime caracterizado pela supressão dos direitos políticos e pela violação dos direitos civis. Seu primeiro presidente foi o general Humberto de Alencar Castello Branco.
“A diferença entre uma democracia e um país totalitário é que numa democracia todo mundo reclama, ninguém vive satisfeito. Mas se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha de seu país, ele responde sem hesitação: ‘Não posso me queixar’”
O regime militar governou por meio de decretos conhecidos como atos institucionais (AI), para dar força de lei às suas ações. Durante o governo de Castello Branco, esses decretos serviram para, entre outros desmandos, acabar com as eleições diretas para presidente da República e governadores e pôr fim à pluralidade partidária, instituindo um sistema bipartidário, com a criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena, governista) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, de oposição).
O sucessor de Castello Branco foi o marechal Arthur da Costa e Silva. Seu período na Presidência, de 1967 a 1969, foi marcado pelo aumento no uso da força para conter os protestos populares. Em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva fechou o Congresso Nacional e decretou o AI-5, iniciando a fase mais repressora do regime militar, conhecida com os “anos de chumbo”. O ato conferiu poder ao ditador para cassar mandatos, suspender os direitos políticos e os habeas corpus e institucionalizar a repressão.
Nos decretos seguintes, a imprensa passou a ter censura prévia, com a aprovação do conteúdo a ser veiculado por jornais, revistas, rádio e TV. Entre 1970 e 1978, funcionários do aparelho repressivo permaneciam nas redações de jornais e revistas, como em O Pasquim. Esse sufocamento da liberdade de expressão é contestado pela fina ironia de Millôr na frase em destaque acima. Num primeiro momento, ela pode dar a impressão de que as pessoas estão mais contentes sob um regime ditatorial. Mas uma leitura mais atenta permite entender que numa democracia as pessoas são livres para dar a sua opinião, e há reclamações. Numa ditadura não há espaço para protestos, daí que a frase “não posso me queixar”, em vez de exprimir satisfação, deve ser interpretada como uma restrição ao direito de reclamar (a pessoa quer, mas não pode se queixar).
“Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos”
O governo do general Emílio Garrastazu Médici, de 1969 a 1974, foi o período mais repressor do regime militar, levando parte da esquerda à luta armada. Nessa época, multiplicaram-se as acusações de tortura, e ocorreu a maior parte dos “desaparecimentos” de perseguidos políticos – mortos pela repressão, cujos corpos nunca apareceram.
Espalharam-se pelo país centros de tortura ligados ao Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Sufocada nos grandes centros urbanos, a dissidência formou guerrilhas que tentaram se firmar no campo, como na região do rio Araguaia (nas regiões Centro-Oeste e Norte), mas acabou derrotada. A morte de dirigentes de esquerda, como Carlos Marighella e Carlos Lamarca, e o desaparecimento do ex-deputado federal pelo PTB Rubens Paiva serviram como um recado àqueles que se opunham ao regime.
“Brasil, país do futuro. Sempre.”
O mandato de Médici também foi marcado pelo ufanismo, com a tentativa de criar a imagem de que o Brasil era o país do futuro – slogan adaptado por Millôr na frase acima que, ao completá-lo com a palavra “sempre”, sugere que o próximo estágio do desenvolvimento jamais será atingido. Como trunfo, o governo alardeava o “milagre econômico”: entre 1969 e 1973, a economia cresce muito rapidamente, em média, 11,2% ao ano. Na época, havia nos países ricos fartura de capitais para investimentos no exterior, e o Brasil contraiu pesados empréstimos externos para construir rodovias, usinas e infraestrutura de telecomunicações. Com isso, no período, a dívida externa saltou de 3,5 bilhões de dólares para 17 bilhões de dólares.
“O generalíssimo Geisel quer a abertura política lenta e gradual! Se Hércules seguisse esse princípio, teria lavado as estrebarias de Augias com um regador e aquilo estava cheio de bosta até hoje”
Pressionado pelo fim do “milagre econômico”, o general Ernesto Geisel (1974-1979) propôs a abertura política “lenta, segura e gradual”. Na frase acima, Millôr compara esse modelo com um dos 12 trabalhos de Hércules, herói da mitologia grega, que desviou o curso de um rio para fazer a referida limpeza.
Com o fortalecimento do MDB nas eleições de 1974, o governo manobrou para mudar as regras eleitorais e permitir que a Arena mantivesse o controle político do Congresso, com o Pacote de Abril, baixado por Geisel em 1977. Paralelamente, o movimento estudantil realizava passeatas, e, em 1978, Luiz Inácio Lula da Silva comandava a primeira greve operária em dez anos, em São Bernardo do Campo. No mesmo ano, Geisel revogou o AI-5, pois já não podia usar a repressão como antes.
“Deixem de pessimismo, meninos! Se, como sabem todos, a astronomia nasceu da superstição; (…) e a própria moral, do orgulho humano, por que a democracia brasileira não pode sair do general Figueiredo?”
O governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985) manteve o processo de “abertura lenta e gradual”. Sob a pressão de manifestações e greves, com um descontentamento interno crescente, o presidente, em 1979, decretou a Lei de Anistia, que permitiu a libertação e a volta ao país dos opositores ao regime, e restabeleceu o pluripartidarismo. A Arena passou a ser o Partido Democrático Social (PDS), o MDB virou PMDB e foram fundados o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1982, as primeiras eleições diretas para governador em 20 anos começaram a abrir o caminho da redemocratização.
Paralelamente, o clamor por eleições diretas para presidente passou a ganhar força. Manifestações pelas Diretas Já, como milhões de pessoas pelo Brasil, davam apoio à emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), restabelecendo as diretas. Em 1984, a campanha chegou a reunir 1 milhão de pessoas no Rio e 1,7 milhão em São Paulo, as maiores manifestações da história do Brasil até então. A emenda à Constituição, entretanto, não obteve os dois terços de votos necessários no Congresso para a sua aprovação (regra do Pacote de Abril de Geisel, pois, antes, o necessário era metade, o que a emenda conseguiu). A escolha do próximo presidente ficou então nas mãos do Colégio Eleitoral.
NOVA REPÚBLICA (1985)
Em janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheu o primeiro presidente civil após mais de duas décadas de ditadura militar. O candidato da oposição, Tancredo Neves (PMDB), conseguiu a adesão de políticos ligados à antiga Arena e derrotou Paulo Maluf (PDS), o candidato de Figueiredo. No entanto, o presidente eleito adoeceu na véspera da posse, e seu vice, José Sarney, assumiu interinamente. Semanas depois, Tancredo morreu, e Sarney foi efetivado como presidente.
“A Nova República é apenas o cadáver da velha. Vê-se pelos vermes”
Apesar da abertura política, a Nova República manteve intocada boa parte das instituições moldadas pelos militares, com muitos postos-chave do governo ocupados por quadros do período ditatorial. O próprio Sarney fora parte integrante da cúpula do regime militar, como presidente da Arena. Como se nota na frase acima, o paradoxo não passou despercebido pela ácida crítica de Millôr.
“Hiperinflação é puxar uma nota de 500 pra pagar uma conta de 50”
Em 1988, foi promulgada a Nova Constituição, que ampliou os direitos individuais e coletivos e confirmou as eleições diretas para presidente. Mas, além da reforma constitucional, o governo Sarney foi marcado pela tentativa de estabilizar a economia. Sucessivos planos econômicos procuraram acabar com a inflação. O primeiro deles, o Plano Cruzado, de 1986, substituiu a moeda, cruzeiro, pelo cruzado, e congelou preços e salários. Apesar dos bons resultados no início, o plano fracassou. Novas tentativas de domar a alta dos preços não deram resultado, e o mandato de Sarney terminou com uma hiperinflação de quase 80% ao mês.
“Tudo somado, achei que Collor ganhou o debate com Lula. A Datafolha acha que foi Lula. Mas a dúvida é: quem ganha um debate medíocre é melhor ou pior do que quem perde?”
Em 1989, nas primeiras eleições diretas para a Presidência de 1960, sobressaem dois candidatos. O governador de Alagoas, Fernando Collor (PRN), surge com o lema de combate à corrupção e à inflação. Seu rival é o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, ex-dirigente sindical e líder do PT. Com o apoio de setores importantes da mídia, Collor vence a disputa – ficou famosa a acusação de edição parcial em benefício de Collor do debate na TV Globo, ao qual Millôr se refere na frase acima. Assim que assume a Presidência, lança o Plano Collor. Baseado no confisco do dinheiro em contas-correntes e poupanças, além do congelamento de preços e salários, o plano visava a conter a demanda para derrubar a inflação. A receita falhou e provocou profunda ira popular.
“Com o escândalo, a apuração dos crimes econômicos de Collor e PC e a consequente deposição de Collor, o Brasil vira mais uma página de sua história. Pra trás, como sempre”
O isolamento de Collor agravou-se ainda mais com as denúncias de seu envolvimento com tráfico de influência e irregularidades financeiras organizados por Paulo César Farias, o PC Farias, seu amigo íntimo e tesoureiro de campanha. Em junho de 1992, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as denúncias, enquanto manifestações populares puxadas por estudantes, os “caras-pintadas”, exigiam o impeachment do presidente. Com sua destituição iminente, Collor renunciou. Em seu lugar, assumiu o vice, Itamar Franco.
“Campeonato mundial de vôlei, de basquete, tetra de futebol, estabilidade do real, cuidado! Acho que já estamos com demais do ótimo!”
Com o país novamente governado por um vice, o Brasil ainda enfrentava uma inflação elevada. Após sucessivas trocas de ministros, a pasta da Fazenda foi ocupada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Em julho de 1994, ele comandou uma abrangente reestruturação da economia: o Plano Real. Seu pilar foi a criação de uma nova moeda, o real, equiparada ao valor do dólar. O sucesso do plano, somado às conquistas esportivas do período, gerou um raro momento de otimismo, registrado com um misto de desconfiança na frase acima de Millôr. O combate à inflação projetou o nome de Fernando Henrique (FHC), que se candidatou à Presidência pelo PSDB nas eleições realizadas no mesmo ano e derrotou Lula, do PT.
“Fernando Henrique Cardoso é o único intelectual que se acha mais inteligente do que ele próprio”
Sociólogo conhecido por sua vaidade intelectual, característica que Millôr sempre ironizava, FHC promoveu ajustes para manter a inflação baixa e adotou uma política neoliberal, defendendo a redução do Estado. Seu governo privatizou empresas de siderurgia, mineração e telecomunicações e atraiu investimentos estrangeiros. Em 1997, articulou uma emenda constitucional que permitiu a reeleição presidencial, aprovada pelo Congresso. Com o caminho livre para uma nova candidatura, FHC venceu as eleições de 1998, derrotando Lula de novo.
Logo no início do segundo mandato, o governo de FHC foi levado a desvalorizar o real diante do dólar, como forma de incentivar as exportações e buscar um equilíbrio das contas públicas. Apesar do controle da inflação, FHC terminou desgastado o seu segundo mandato por causa do desemprego em alta e do baixo crescimento econômico. Era a brecha que Lula precisava para se eleger em 2002, após três tentativas frustradas de chegar à Presidência.
“Lula igualzinho a FHC, qualquer um percebe, é fascinado pela pompa. E é sempre engolido pelas circunstâncias”
Luiz Inácio Lula da Silva chegou à Presidência encarnando a vontade de mudança do eleitorado. Mas adotou a linha conservadora de seu antecessor na economia, com pagamento da dívida pública, metas de inflação e juros altos. Politicamente, também não se diferenciou de FHC, aliando-se a adversários históricos para manter a maioria no Congresso. Essas similaridades entre o governo de Lula e o de FHC foram registradas por Millôr, que insere na comparação acima um trocadilho com a expressão “pompa e circunstância”.
O esforço do PT para conquistar o apoio parlamentar deu origem a um grave escândalo de corrupção. Em 2006, o partido foi acusado de envolvimento em um esquema para manter a maioria no Congresso: deputados teriam recebido dinheiro ilegal para votar de acordo com os interesses do governo, no chamado “mensalão”. Mesmo fragilizado pelas denúncias, Lula conseguiu se reeleger em 2006, tendo como trunfo o bom desempenho da economia e os resultados positivos de programas sociais, como o Bolsa Família. O segundo mandato de Lula seguiu essa toada, com a valorização progressiva do salário mínimo e a ampliação de programas de distribuição de renda. O país também se beneficiou das condições favoráveis do cenário mundial, e a economia expandiu-se. Essa conjuntura propícia garantiu a Lula uma aprovação de 83% ao final de seu mandato, e ao PT a permanência na Presidência, com a eleição de Dilma Rousseff, em 2010. Pouco depois da posse de Dilma, Millôr passa por um grave problema de saúde, que o afasta do trabalho no último ano de vida. Com a sua morte, o Brasil perde um de seus grandes intelectuais do último século.
(texto do jornalista Fábio Sasaki, publicado em agosto de 2012 no Guia do Estudante Atualidades Vestibular, com adaptações para a republicação em agosto de 2023, marcando o centenário do nascimento de Millôr)
A RESISTÊNCIA IRREVERENTE
Durante a ditadura, o Pif-Paf, O Pasquim e outras publicações da imprensa alternativa recorreram ao bom humor para driblar a censura e confrontar os militares
Em maio de 1964, poucas semanas depois de os militares tomarem o poder, Millôr Fernandes lançava a revista Pif-Paf. Com uma fórmula que recorria à ironia para criticar o regime, a publicação durou apenas oito números. Barrado pela censura, o Pif-Paf despediu-se das bancas com um último e debochado recado: “…se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda a sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia”.
Apesar da vida curta, o Pif-Paf ajudou a estabelecer os pilares de uma imprensa alternativa, construída por jornalistas e intelectuais que não achavam espaço na grande mídia para questionar o regime repressivo. Como não se conseguia confrontar o autoritarismo abertamente, a estratégia era partir para a crítica dos costumes e do moralismo, recorrendo a uma sofisticada ironia para desafiar os limites da censura.
A mais influente publicação com essas características foi O Pasquim. Ele surgiu em 1969, no Rio de Janeiro, em plena vigência do AI-5, e tornou-se referência, reunindo um time que, além de Millôr, contava com nomes como Jaguar, Henfil, Ziraldo, Tarso de Castro, Paulo Francis e Ivan Lessa.
O semanário logo caiu no gosto dos leitores. Apesar de abusar de metáforas e mensagens cifradas para driblar a censura, o aparelho repressivo não gostou de uma brincadeira feita com o famoso quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, e botou na cadeia boa parte da redação, em 1970. Durante os dois meses em que o grupo esteve detido, os poucos colaboradores em liberdade continuaram publicando o jornal, a duras penas. Sem poder mencionar as prisões para justificar a ausência da equipe, escreveram que Ziraldo e companhia estavam “gripados”, em mais um recado cifrado e irônico aos leitores.
Depois de soltos, os membros de O Pasquim não tiveram mais sossego. Antes de ir para as bancas, o jornal precisava passar pela leitura prévia dos censores. O regime também começou a ameaçar empresas que anunciassem na publicação e donos das bancas que a vendessem. Mesmo com essas dificuldades, O Pasquim sobreviveu aos anos de chumbo e foi publicado até 1991. Deixou como herança um estilo de resistência debochado, que inspirou desde cartunistas como Angeli, Glauco e Laerte, até os humoristas do Casseta & Planeta.
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