O paulista Rodrigo Junqueira Santiago Simões, de 18 anos, foi um dos candidatos que conquistou a tão sonhada nota 1000 na redação do Enem 2022. Sobre o tema “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil“, Rodrigo escreveu uma dissertação-argumentativa avaliada como exemplar pela banca do exame.
No texto, o estudante trouxe como principal repertório o livro “Ideias para adiar o fim do mundo“, de Ailton Krenak. O autor, que está presente na lista de obras obrigatórias da Unicamp 2025 com o livro “A vida não é útil“, é também um ativista da causa indígena.
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Uma das principais dicas para se dar bem na redação do Enem é entender o que a banca espera do candidato – e nada melhor do que fazer isso utilizando uma redação nota máxima. Para analisar todos os detalhes da redação do Rodrigo, o GUIA DO ESTUDANTE convidou Aline Benevides, coordenadora e professora de redação do Poliedro, que, inclusive, deu aula para o estudante durante a sua preparação.
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Confira abaixo a redação nota 1000 na íntegra e em seguida os comentários da professora acerca de cada parágrafo.
Introdução
No livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Ailton Krenak critica o distanciamento entre a população brasileira como um todo e a natureza, o que não se aplica às comunidades indígenas. Tal pensamento é extremamente atual, já que não só indígenas como todas as populações tradicionais têm uma relação de respeito mútuo com a natureza, aspectos que as diferenciam do resto dos brasileiros. Com isso, a agressão ao meio ambiente e o apagamento dos saberes ancestrais configuram desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil.
O texto é iniciado com a apresentação de um repertório sociocultural, o livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak. Nele, é estabelecida uma contraposição entre como os povos indígenas tratam a natureza e a população brasileira. Esse repertório, além de ser pertinente ao tema – aspecto fundamental para a validação do repertório -, é articulado, no segundo período da introdução, ao contexto contemporâneo, por meio de uma explicação que evidencia o “respeito mútuo com a natureza”, o que faz com que o repertório se torne produtivo. A produtividade deste repertório é fundamental e suficiente para que o texto obtenha nota máxima na competência 2 – inclusive, não há outro repertório sociocultural no texto. Após essa articulação, a tese é apresentada com a exposição de dois argumentos: “agressão ao meio ambiente” [argumento 1] e “apagamento dos saberes ancestrais” [argumento 2], e da frase temática completa, “desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. Os encaminhamentos argumentativos, quando apresentados na tese, evidenciam o planejamento do texto e permitem que o leitor compreenda qual será o percurso argumentativo do estudante, aspectos muito importantes para a Competência 3.
Desenvolvimento 1
Primeiramente, é preciso compreender como a agressão ao meio ambiente fere as comunidades tradicionais. Há séculos esses povos vêm construindo suas culturas com respeito à natureza, tratando-a de forma sustentável. Consequentemente, criou-se nesses grupos uma visão afetiva dos recursos naturais, que se tornaram base para a manutenção de uma identidade característica a cada uma dessas comunidades. No entanto, todos os biomas brasileiros estão sendo constantemente ameaçados, seja pela mineração, garimpo ilegal, desmatamento ou poluição, fatores que têm em comum a priorização de ganho financeiro em detrimento da preservação ambiental. Assim, parte da população, coloca em risco o maior patrimônio dos povos tradicionais, a natureza, em busca de recursos naturais que trazem benefícios restrito aos agressores, tornando o modo de vida dessas comunidades impraticável. Portanto, com base na importância do meio ambiente para as comunidades tradicionais, causar danos à natureza significa, também, causar danos aos povos em questão.
No primeiro parágrafo de desenvolvimento, o argumento prometido na tese é retomado com a exposição de sua relação com o tema, “agressão ao meio ambiente fere as comunidades tradicionais”. Os períodos seguintes explicitam essa relação: os povos tradicionais respeitam a natureza, o que caracteriza a sua identidade cultural; contudo, a exploração dos recursos naturais, decorrente do garimpo, prejudica também esses povos. A construção argumentativa ocorre por meio de relações causais entre os fatores apresentados e com o auxílio de conjunções que as evidenciam, que são suficientes para a explicação do argumento. Este parágrafo comprova que, apesar de bem-vindos, repertórios socioculturais não são necessários para uma boa construção argumentativa.
Desenvolvimento 2
Ademais, é de grande relevância entender como o apagamento dos saberes ancestrais leva à desvalorização das populações tradicionais. Devido à grande diversidade de povos tradicionais no Brasil, houve, em cada um deles, a criação de um conjunto de conhecimentos, pensamentos, filosofias e linguagens distintas, passado pelas gerações, ditando e mantendo vivo o modo de vida que caracteriza identitariamente cada grupo. Entretanto, essa bagagem epistêmica é muito pouco externalizada, pelo fato de que esses saberes são coletivizados apenas em esferas menores, de forma a manter a ancestralidade dos povos locais apenas entre si. Logo, todo conhecimento produzido nessa perspectiva é desconhecido do grande público, sendo pouco discutido e não fazendo parte da visão de mundo da maioria dos brasileiros. Dessa forma, os saberes dos povos tradicionais são desconsiderados, acarretando na desvalorização de todos esses grupos.
O segundo parágrafo de desenvolvimento começa com o uso de um operador argumentativo, que estabelece a relação de causalidade entre os argumentos. O argumento, prometido na tese, é retomado no tópico frasal, expressando a relação com o tema “apagamento dos saberes tradicionais leva à desvalorização das populações tradicionais”. Assim como o parágrafo anterior, há uma explicação de como a pouca exposição e a divulgação dos saberes tradicionais contribuem para o desconhecimento em relação a esses povos, o que leva à sua desvalorização. É importante destacar, novamente, que a mera explicação do argumento já é suficiente para uma boa construção argumentativa, ou seja, não é preciso expor repertórios externos em todos os parágrafos de desenvolvimento. Note que apenas um é suficiente para validar a nota máxima de repertório sociocultural exigida pelo Enem, que foi exposto na introdução com o livro de Ailton Krenak.
Conclusão
Em síntese, o impacto causado ao meio ambiente e a desconsideração de seus saberes são grandes agentes de desvalorização das comunidades tradicionais. Por isso, cabe ao Ministério do Meio Ambiente proteger os biomas do país, através do endurecimento de punições contra crimes ambientais, com a finalidade de salvaguardar o modo de vida de diferentes povos, tornando possível a manutenção da diversidade cultural brasileira. Além disso, o Ministério da Educação deve promover a discussão sobre os conhecimentos das comunidades tradicionais, por meio da incorporação de conteúdos relacionados a esses povos na grade curricular das escolas, a fim de divulgar a visão de mundo desses grupos, fomentando uma convivência pacífica entre toda a população.
A conclusão é iniciada com o uso de um operador argumentativo conclusivo, fundamental para a articulação do segundo parágrafo de desenvolvimento com a conclusão. Em sequência, como esperado pelo gênero dissertativo-argumentativo, os argumentos são retomados com a exposição do posicionamento – neste caso, a frase temática. Além disso, o Enem, diferente de outros vestibulares, solicita a formulação de uma proposta de intervenção, que deve apresentar cinco elementos: agente, ação, modo/meio, finalidade e detalhamento de algum deles. No texto, duas propostas são formuladas, cada qual dialogando com um dos argumentos, isto é, o estudante soluciona os problemas apresentados no corpo do texto, o que evidencia um projeto de texto claro, que se inicia na tese e é finalizado na conclusão. Vale destacar que as duas propostas de intervenção são expostas com todos os elementos.
A primeira delas é: “cabe ao Ministério do Meio Ambiente [AGENTE] proteger os biomas do país [AÇÃO], através do endurecimento de punições contra crimes ambientais [MODO/MEIO], com a finalidade de salvaguardar o modo de vida de diferentes povos [FINALIDADE], tornando possível a manutenção da diversidade cultural brasileira [DETALHAMENTO DA FINALIDADE]”. A segunda é: “o Ministério da Educação [AGENTE] deve promover a discussão sobre os conhecimentos das comunidades tradicionais [AÇÃO], por meio da incorporação de conteúdos relacionados a esses povos na grade curricular das escolas [MODO/MEIO], a fim de divulgar a visão de mundo desse grupo [FINALIDADE], fomentando uma convivência pacífica entre toda.