O presidente Jair Bolsonaro teria pedido ao Ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, para que na prova do Enem a denominação “golpe militar de 1964” fosse trocado por “revolução de 1964”. Segundo integrantes do governo, o episódio aconteceu no primeiro semestre deste ano, mas Ribeiro não teria intercedido de modo prático junto ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que elabora o Enem, uma vez que as questões passam por um longo processo de preparação. A informação foi publicada nesta sexta-feira na Folha de S. Paulo.
A notícia sobre o pedido do presidente agrava a maior crise que o Inep enfrenta em sua história depois que 37 servidores pediram exoneração dos cargos que ocupavam. Em viagem a Dubai na segunda-feira (15), Bolsonaro disse que o Enem “começa a ter a cara do governo”. Dois dias depois, já no Qatar, o presidente afirmou que não teve acesso às provas e voltou a criticar o exame: “Olha o padrão do Enem do Brasil, pelo amor de Deus. Aquilo mede algum conhecimento ou é ativismo político e comportamental? Não precisa disso”, disse ele a jornalistas.
Segundo reportagem da revista VEJA, o presidente do Inep, Danilo Dupas, tentou impor nomes de sua confiança para compor a equipe que elabora a prova que não faziam parte do quadro da autarquia, mas diante da negativa de funcionários acabou voltando atrás. No domingo (14), o Fantástico entrevistou funcionários do Inep que disseram ter sofrido pressão para eliminar mais de vinte itens da prova já pronta que teriam desagradado Dupas e que precisaram elaborar as questões outras duas vezes. Um exame como o Enem possui alta complexidade por levar em conta não apenas o grau de dificuldade das questões, mas também porque precisa identificar os alunos mais e menos preparados.
Banco Nacional de Itens: as questões do Enem
Um novo capítulo surgiu nesta sexta-feira (19) com a divulgação pela revista Piauí da interferência que o então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, fez na prova aplicada no ano de 2019. Junto com outras três pessoas por ele designadas e munidos com carimbos com os dizeres “sim” e “não”, o grupo vetou 66 questões do exame que já estava pronto. As questões do Enem são elaboradas por professores de várias universidades do país e compõem o Banco Nacional de Itens, que hoje é abastecido com mais de 10 mil testes. No documento que a Piauí teve acesso, funcionários do Inep pediam a reabilitação de 38 questões e concordavam com a eliminação de 28 delas. Ainda que não seja possível ter acesso às questões na íntegra, pois ainda fazem parte do banco, é possível identificar o itens que incomodaram o tribunal ideológico daquele ano.
As censuradas do Enem
As perguntas censuradas envolviam Chico Buarque, quadrinhos de Mafalda e Laerte, poemas de Ferreira Gullar e Paulo Leminski, feminismo, Madonna, relações internacionais, ditadura militar, entre outros assuntos. Veja abaixo uma lista com alguns temas e as alegações para censurá-los.
Mafalda
A tirinha mostra Mafalda, que está prestes a entrar para o jardim de infância, notando que sua mãe está insegura com a nova fase na vida da filha. Mafalda diz para a sua mãe: “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica triste e Mafalda sai andando. Na última tirinha, a personagem diz: “É tão bom confortar a mãe da gente!” O argumento para o veto foi: “gera polêmica desnecessária”.
Laerte
Uma charge da cartunista Laerte propunha uma “reflexão crítica sobre o reconhecimento à diversidade na sociedade contemporânea”, de acordo com a defesa feita pelos servidores do Inep. A comissão que vetou a questão comentou: “Leitura direcionada da história/Direcionamento do pensamento.”
HIV/Aids
Uma questão na prova de ciências da natureza falava sobre os cuidados com relação ao HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. A comissão de censura do Inep justificou a exclusão alegando que “a questão gera polêmica desnecessária/Direcionamento do controle de saúde”.
Maioridade Penal
O tema foi excluído do exame. “Gera polêmica desnecessária a favor da não redução da maioridade penal”, escreveu a comissão. Em 2019, Bolsonaro pressionava o Senado para aprovar um projeto que reduzisse a maioridade penal para crimes hediondos, bandeira de sua campanha eleitoral.
Ferreira Gullar
O poema “Maio 1964” fala sobre a violência e as prisões políticas ocorridas nas semanas seguintes ao golpe. “Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror”, diz uma das estrofes. No gabarito desse item constava apenas que a poesia tratava do “contexto em que o Brasil se encontrava após o golpe militar”. A comissão decidiu excluir a questão do exame justificando que havia “descontextualização histórica do texto.”
Paulo Leminski
A comissão excluiu um poema do curitibano alegando mais uma vez que havia “descontextualização histórica do texto.” O poema também falava da ditadura.
Chico Buarque
A Piauí não conseguiu identificar qual trabalho do compositor e escritor foi censurado. No entanto, consta a seguinte explicação da comissão: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Essa foi uma das questões que os servidores pediram que a exclusão fosse revista.
Feminismo
Uma questão de ciências humanas falava sobre a Marcha das Vadias, mostrando uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação do grupo. A comissão barrou a questão por gerar “polêmica desnecessária”.
Política externa
Uma questão falava sobre as relações entre o governo Donald Trump e Israel. A justificativa da comissão de censura para a exclusão foi que a pergunta tinha “leitura direcionada da história / Interferência desnecessária na soberania de outro país”.
Madonna
Na música “Papa Don’t Preach”, uma adolescente confessa para o pai que está grávida. O parecer dos censores foi: “Gera polêmica desnecessária” – aliás, a mesma frase foi usada para vetar 28 questões da prova.
Ações contra o presidente do Inep e o ministro da Educação
Na quarta-feira (17), entidades educacionais ingressaram com ação civil pública pedindo o afastamento de Danilo Dupas da presidência do Inep. A ação civil é assinada pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Educafro e Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
As entidades pedem que seja concedida tutela de urgência para o afastamento de Dupas, nomeando como interventor do cargo um servidor de carreira do instituto pelo “período necessário para realização e correção integral dos exames do Enem 2021”.
No mesmo dia, nove deputados federais protocolaram ação contra o ministro da Educação, Milton Ribeiro e Danilo Dupas. A ação pede que o Ministério Público Federal investigue os dois por improbidade administrativa. Além disso, pedem “que agentes públicos eventualmente envolvidos no controle ideológico do Enem sejam punidos”.
Terceirização do banco de questões
Em agosto, o GUIA teve acesso a um documento enviado somente para servidores do Inep. Nele, Anderson Soares Oliveira, chefe da Diretoria de Avaliações da Educação Básica (Daeb), mostrava-se favorável à terceirização da elaboração do banco de questões. Ele solicitou que os funcionários apresentassem análises favoráveis ou desfavoráveis sobre manter o atual sistema de questões ou aderir a terceirização do serviço. A solicitação do estudo partiu de Danilo Dupas, atual presidente do Inep.
Na ocasião, servidores do órgão mostraram preocupação com a possibilidade de uma empresa ser contratada para elaborar e revisar os itens do exame. Segundo eles, caso a terceirização seja aprovada, a composição das provas estará suscetível a interferências de quadrilhas especializadas que podem se infiltrar no processo e usar o exame como moeda de troca.
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