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Em “Poema de Sete Faces”, parte do livro “Alguma Poesia”, de 1930, o autor Carlos Drummond de Andrade versa sobre a sua relação com o mundo. Ele escreve: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”.
Quase cinco décadas depois, em 1979, o cantor e compositor Chico Buarque inicia a canção “Até o Fim” dizendo: “Quando nasci veio um anjo safado / o chato dum querubim / E decretou que eu estava predestinado / A ser errado assim”.
Você deve ter notado que os dois textos compartilham trechos muito semelhantes, quase idênticos. Teria, então, Chico Buarque plagiado o poema de Drummond? A resposta é simples: não. Chico Buarque referenciou o texto de Drummond, em um fenômeno chamado intertextualidade.
A canção de Chico Buarque não é a primeira a fazer uma referência direta a outro texto. E, definitivamente, não foi a última. A intertextualidade ocorre de infinitas maneiras, em diversos gêneros e é um tema recorrente no Enem e nos vestibulares.
Entenda o que é o fenômeno, como ele ocorre, e de que forma costuma aparecer nas provas.
O que é intertextualidade?
De forma simples e direta, intertextualidade significa a retomada de um texto em outro. Mas atenção, quando falamos em texto, não estamos, necessariamente, nos referindo ao texto verbal – aquele constituído apenas de palavras escritas ou faladas. Uma pintura, uma fotografia ou uma escultura também podem ser chamados de texto, neste caso não-verbais.
“Nas artes, é comum que uma obra se utilize de uma ideia, um verso, da citação de um trecho ou mesmo apenas de uma referência de outra obra. Pode ser um romance, uma peça de teatro, a letra de uma canção, uma pintura, uma escultura ou qualquer outra forma de expressão artística”, explica Maurício Soares Filho, professor de Literatura do Curso Anglo e especialista em História da Arte.
No exemplo abaixo, veja um clássico exemplo de intertextualidade nas artes plásticas.
Na figura da esquerda, está o quadro “Papa Inocêncio X”, do espanhol Diego Velázquez, pintado em 1650. Na da direita, “Estudo do retrato do Papa Inocêncio X de Velázquez”, do artista anglo-irlandês Francis Bacon, de 1953 – cuidado para não confundir com o outro Francis Bacon, filósofo do século 17.
Repare que ambos retratam a mesma figura, o Papa Inocêncio X, que foi o chefe supremo da igreja católica em meados do século 17. Por mais que retratem o mesmo indivíduo, as duas obras possuem finalidades totalmente diferentes – além, é claro, dos 300 anos que as separam.
Velázquez foi o principal retratista da corte espanhola. Em um tempo em que não existia fotografia, as pinturas deste gênero eram consideradas artigo de luxo, a única maneira de eternizar a imagem de um indivíduo. Quanto mais realista fosse o retrato, de maior prestígio ele desfrutaria. O quadro “Papa Inocêncio X” é um exemplo disso. A obra é um dos mais famosos retratos da História da Arte, sobretudo por conta da forma como o artista conseguiu pintar não apenas com uma fidelidade estética, mas transmitindo o poder e a autoridade do líder espiritual.
Não é a toa que Francis Bacon – o artista – era obcecado pelo trabalho de Velázquez. Durante as décadas de 1950 e 1960, estima-se que o artista tenha criado cinquenta versões do retrato do papa. As obras de Bacon, entretanto, mostram um lado diferente do líder: no lugar da austeridade e compostura, entra o desespero e a agonia. O fantasmagórico papa grita e suas feições estão distorcidas.
Enquanto o retrato de Velázquez tinha como objetivo eternizar a figura e o poder do papa, a obra de Bacon, um homem ateu e repreendido pela sua sexualidade, foi uma maneira encontrada pelo artista para expressar seus sentimentos. As duas retratam a mesma figura, mas a partir de contextos e objetivos totalmente divergentes. Bacon resgata a obra de Velázquez aplicando a sua visão e intenção na tela. Isto é intertextualidade.
Exemplos de intertextualidade
Agora você já sabe que intertextualidade é a retomada de um texto em outro. E que nem todo texto é composto somente por palavras e frases.
O vídeo abaixo compila referências a filmes de sucesso dos anos 1970 e 1980 na primeira temporada da série Stranger Things, da Netflix. A produção é apontada como uma das campeãs em referenciar ou resgatar clássicos da ficção científica e da fantasia.
Se o conceito de intertextualidade ainda está soando um pouco confuso, tome como exemplo o trecho do conto “A cartomante”, de Machado de Assis.
“Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.”
Note que o narrador cita diretamente os personagens de William Shakespeare, como se assumisse a existência do autor e de sua obra “Hamlet” dentro da narrativa. Isso também é intertextualidade. Nem sempre o fenômeno ocorrerá em formato de releituras ou versões: uma mera citação à existência de um texto externo pode ser considerado um exemplo de intertextualidade.
Um campo onde isso ocorre com frequência é o publicitário. Para Maurício Soares, professor do Anglo, é compreensível que uma obra de arte muito conhecida, uma frase importante de determinado autor ou a referência a uma ideia já consolidada possam agregar valor ao produto que está sendo anunciado na propaganda.
“Além de associar a imagem do produto a algo reconhecido como positivo e verdadeiro, o espectador/leitor que percebe a referência intertextual ao ver a propaganda. Isso gera uma agradável sensação de que é capaz de identificar um dado implícito no discurso, o que também pode aumentar a simpatia pelo produto”, afirma.
Veja como exemplo a propaganda ‘Branca de Neve’, da marca de carros sueca Volvo.
O cartaz de 2009 faz uma alusão direta à personagem do conto de fada. A princesa usa o vestido que aparece na adaptação da Walt Disney e pede carona em uma estrada no “mundo real”. No texto superior é possível ler: “Volvo XC90. Com sete lugares. Desculpe”, em tradução livre.
Mesmo com a ausência dos anões ou de qualquer indicação verbal que confirme se tratar da Branca de Neve, o diálogo com o conto de fadas é feito automaticamente e a ironia da frase é entendida pelo leitor.
A intertextualidade, neste caso, acontece no momento em que se insere o conto da Branca de Neve em um contexto que não é o seu original e o leitor é capaz de reconhecer esse movimento. Para quem não esteja familiarizado com o conto, ou nunca tenha assistido o filme da Disney, a imagem não terá o sentido completo.
Qual a diferença entre intertextualidade, plágio e inspiração?
Quando se discute intertextualidade, é comum que surjam dúvidas na hora de diferenciar uma referenciação de um plágio – ou ainda de uma mera inspiração. De fato, não há uma regra definitiva e absoluta, mas conhecer a definição de cada um destes fenômenos ajuda.
É considerado plágio a cópia de um trabalho já realizado por outra pessoa. Simples e direto, é o famoso “copia e cola”. “Nos casos de plágio, normalmente, o artista não contribui e não desenvolve a ideia inicial em qualquer aspecto”, explica o professor de História da Arte.
O famoso quadro “Independência ou Morte!”, de Pedro Américo (1843-1905), é a principal representação visual do momento da declaração da independência do Brasil, em 1822. O quadro, concluído em 1888, porém, é alvo de uma série de críticas, incluindo plágio.
+ Independência ou Morte: a história por trás da pintura de Pedro Américo
Artistas da época notaram que a obra compartilhava muitas semelhanças com a tela “1807, Friedland”, do francês Jean-Louis-Ernest Meissonier, que mostra uma vitória militar de Napoleão Bonaparte.
Apesar das acusações, não há um consenso em torno do tema, e algumas leituras defendem que Américo incorporou elementos de diversas obras que faziam parte do movimento chamado “Pintura de História” enquanto citações, e não cópia.
Diferente do plágio, na relação intertextual podemos afirmar que um texto “se alimenta” do outro, podendo um contribuir com a compreensão do outro ou ainda ampliando o seu sentido original.
“Só podemos afirmar que se trata de um caso de intertextualidade quando não restarem dúvidas de que o artista está se referindo a determinada obra. A forma como a referência é construída, como no exemplo entre Drummond e Chico Buarque, deixa claro que o verso original foi intencionalmente usado nas canções. Não é um exemplo de inspiração, o que de fato ocorre é uma citação”, esclarece o professor.
Quanto à inspiração, Soares explica que é sempre possível inspirar-se na ideia de um outro artista, mas o que se espera é que, mesmo partindo de um princípio semelhante, cada artista desenvolva o seu trabalho de maneira diferente, utilizando a peculiaridade de seu estilo pessoal.
Intertextualidade no Enem
Nas provas do Enem e dos principais vestibulares, a intertextualidade é um tema frequentemente explorado. A boa notícia é que raramente as questões exigem o conhecimento do estudante a respeito das referências presentes nos fragmentos fornecidos para análise.
“As boas provas não se baseiam em medir a capacidade do estudante de memorizar um maior número de frases ou imagens, mas sim em avaliar sua habilidade de compreender a natureza da ligação entre os textos”, afirma o professor do Anglo.
“Geralmente, é solicitado que o candidato saiba reconhecer em que aspecto a utilização da intertextualidade contribui para a compreensão do discurso do artista que optou por referir-se a outro na construção de seu trabalho”.
Abaixo, confira uma questão da prova de Linguagens do Enem 2014.
Na criação do texto, o chargista Iotti usa criativamente um intertexto: os traços reconstroem uma cena de Guernica, painel de Pablo Picasso que retrata os horrores e a destruição provocados pelo bombardeio a uma pequena cidade da Espanha. Na charge, publicada no período de carnaval, recebe destaque a figura do carro, elemento introduzido por Iotti no intertexto. Além dessa figura, a linguagem verbal contribui para estabelecer um diálogo entre a obra de Picasso e a charge, ao explorar
A) uma referência ao contexto, “trânsito no feriadão”, esclarecendo-se o referente tanto do texto de Iotti quanto da obra de Picasso.
B) uma referência ao tempo presente, com o emprego da forma verbal “é”, evidenciando-se a atualidade do tema abordado tanto pelo pintor espanhol quanto pelo chargista brasileiro.
C) um termo pejorativo, “trânsito”, reforçando-se a imagem negativa de mundo caótico presente tanto em Guernica quanto na charge.
D) uma referência temporal, “sempre”, referindo-se à permanência de tragédias retratadas tanto em Guernica quanto na charge.
E) uma expressão polissêmica, “quadro dramático”, remetendo-se tanto à obra pictórica quanto ao contexto do trânsito brasileiro.
A resposta correta é a alternativa E, que frisa a diversidade de significados que a expressão “quadro dramático” pode ter. Ela pode tanto se referir, literalmente, a uma tela artística que transmita sentimentos de drama, quanto a uma situação em que desperte agonia, exageros, ou que seja comovente aos presentes. Neste caso, o trânsito no feriado de carnaval representaria a última opção.
Outro formato bem comum em exercícios de intertextualidade é a comparação entre dois textos. Veja a questão da prova de Linguagens do Enem 2018.
TEXTO 1
TEXTO 2
Imaginemos um cidadão, residente na periferia de um grande centro urbano, que diariamente acorda às 5h para trabalhar, enfrente em média 2 horas de transporte público, em geral lotado, para chegar às 8h ao trabalho. Termina o expediente às 17h e chega em casa às 19h para, aí sim, cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos etc. Como dizer a essa pessoa que ela deve praticar exercícios, pois é importante para sua saúde? Como ela irá entender a mensagem da importância do exercício físico? A probabilidade de essa pessoa praticar exercícios regularmente é significativamente menor que a de pessoas da classe média/alta que vivem outra realidade. Nesse caso, a abordagem individual do problema tende a fazer com que a pessoa se sinta impotente em não conseguir praticar exercícios e, consequentemente, culpada pelo fato de ser ou estar sedentária.
FERREIRA, M. S. Aptidão física e saúde na educação física escolar: ampliando o enfoque. RBCE, n. 2, jan 2001 (adaptado).
O segundo texto, que propõe uma reflexão sobre o primeiro acerca do impacto de mudanças no estilo de vida na saúde, apresenta uma visão
A) Medicalizada, que relaciona a prática de exercícios físicos por qualquer indivíduo à promoção da saúde.
B) Ampliada, que considera aspectos sociais intervenientes na prática de exercícios no cotidiano.
C) Crítica, que associa a interferência das tarefas da casa ao sedentarismo do indivíduo.
D) Focalizada, que atribui ao indivíduo a responsabilidade pela prevenção de doenças.
E) Geracional, que preconiza a representação do culto à jovialidade.
A alternativa que descreve corretamente a visão do segundo texto é a B. O excerto não se limita à noção proposta pelo texto 1 e amplia a discussão ao considerar que questões sociais e financeiras também impactam a presença de atividades físicas no dia a dia da população.
Para o professor, não há atalhos ou truques na hora de treinar o olho para identificar relações de intertextualidade.
“Identificar uma referência intertextual depende diretamente do repertório cultural do leitor. É claro que conhecer o procedimento e ficar atento sobre como costuma ser usado por artistas ou publicitários contribui para que o estudante possa manter-se atento e até mesmo procurar exemplos na prova. Questões em que a intertextualidade é o tema principal podem ser usadas para diferenciar o estudante leitor daquele que não tem o mesmo hábito”, conclui.
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