Nesta segunda-feira (15), durante viagem a Dubai, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Enem “começa a ter a cara do governo”. A declaração é feita após 37 servidores públicos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pelo exame, entregarem seus cargos na semana passada. Uma das principais denúncias feitas pelos exonerados é a interferência política na prova.
“Começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem. Ninguém está preocupado com aquelas questões absurdas do passado, de cair um tema de redação que não tinha nada a ver com nada. É realmente algo voltado para o aprendizado”, disse Bolsonaro durante fórum de investimentos em Dubai.
Em entrevista ao Fantástico no domingo (14), funcionários que pediram demissão do Inep contaram situações de censura às questões do exame, que será aplicado nos dias 21 e 28 de novembro. De acordo com o relato de servidores, o diretor da avaliação da educação básica, Anderson Oliveira, que faz o meio de campo entre a equipe técnica que elabora o Enem e o presidente Danilo Dupas, teria lido as questões de uma primeira versão da prova e solicitado a exclusão de mais de duas dezenas delas. “Eram questões que tratavam principalmente da história recente do país, dos últimos 50 anos. Sob o ponto de vista da equipe técnica, não havia qualquer reparo pedagógico a ser feito”, disse um servidor à reportagem.
Problema: com a exclusão das questões na primeira versão, servidores contam que foi necessário refazer a prova duas vezes para tentar manter a capacidade do exame. “Grande erro é achar que você pode simplesmente pegar uma prova e sair riscando itens que você não gosta do conteúdo, é uma pressão insuportável”, disse um servidor à reportagem do Fantástico.
Segundo reportagem da revista VEJA, Danilo Dupas também tentou impor nomes de sua confiança para compor a equipe que elabora a prova que não faziam parte do quadro da autarquia, mas diante da negativa de funcionários acabou voltando atrás. Funcionários do Inep, sob condição de anonimato, disseram à reportagem que as pressões deram resultado. “Fizemos uma prova o mais ‘chapa branca’ possível.”
Após fala de Bolsonaro, que admite a interferência do governo na elaboração do Enem, os deputados da comissão de Educação da Câmara dos Deputados pretendem convocar nesta semana o ministro da Educação Milton Ribeiro para dar explicações sobre a debandada de servidores do Inep. Ribeiro havia sido poupado da sabatina na semana passada e, no lugar dele, esteve Danilo Dupas, que se limitou a dizer que a prova não estava em risco e que se tratou de uma “questão interna”, sem dar maiores explicações.
Tribunal ideológico no Enem
Nesse ano, o Inep chegou a levantar a possibilidade de estabelecer uma espécie de tribunal ideológico, com a criação de uma nova instância de análise dos itens das avaliações da educação básica”. A comissão permanente, segundo a portaria, não permitiria “questões subjetivas” e teria atenção a “valores morais”.
Milton Ribeiro chegou a falar que poderia analisar pessoalmente as questões do Enem para evitar “perguntas muito subjetivas e até mesmo com cunho ideológico”. Mas, tempos depois, ele voltou atrás e disse que não teria acesso às questões do exame.
Sobre as tentativas externas de interferência que o Inep vem sofrendo nos últimos anos, Maria Inês Fini, ex-presidente do órgão, disse ao GUIA que o instituto precisa ser gerenciado com políticas de Estado sem serem atreladas a um governo. “Ele [Inep] é importantíssimo para o Brasil, porque sem estatísticas e avaliações você não pode garantir os direitos constitucionais. Não só de receber educação, mas de ter uma educação de qualidade”.
Denúncias de pressão e assédio moral
Além de interferência política no Enem, servidores denunciam assédio moral e o desmonte do órgão mais importante do Ministério da Educação. Segundo eles, o Inep enfrenta uma “falta de comando técnico” da presidência do órgão. Ainda citam que a atual gestão promove um “clima de insegurança e medo”.
As denúncias contra as tentativas de ingerência por parte de Dupas em processos já consolidados dentro do Inep são graves, avalia Maria Inês.”Os servidores são pessoas responsáveis. Como é que você pode exigir a omissão de dados, alteração ou interferência, por exemplo, na elaboração de provas?”, comenta.
Documentos exclusivos obtidos pela VEJA revelam que “a presidência exercida por Dupas e algumas diretorias subordinadas a ele têm imposto mudanças no quadro de funcionários sem consulta e vetado transferências que já haviam sido acertadas previamente entre quadros do Inep e suas chefias diretas”.
A reportagem denunciou ainda um processo de auditoria interna que desagradou os funcionários. Segundo relatos dos próprios servidores, incluindo estagiários e office boys, os funcionários foram chamados para entrevistas presenciais para detalhar suas atribuições. No entanto, eles afirmam que faltava domínio técnico do trabalho que é realizado por parte dos entrevistadores.
“O objetivo desses encontros não é melhorar a eficiência do Inep, e sim dar argumentos para a presidência intensificar o processo de desmonte”, disse um assessor à reportagem da VEJA. Outra funcionária disse à revista que o clima é de medo, desconfiança, intimidação, perseguição e insegurança psicológica no órgão.
O Enem no meio dessa crise
Em nota oficial, o Inep confirmou a data de aplicação das provas e afirmou que elas não serão afetadas pelos pedidos de demissão. Apesar de não ser cancelado, a preocupação é que o exame, com pouco mais de 3,4 milhões de inscritos, esteja sob risco de falhas em sua aplicação.
Segundo Maria Inês, essa crise coloca em risco a segurança do Enem 2021 porque os principais coordenadores de logística não fazem mais parte do quadro. Além da conferência dos resultados finais, esses funcionários eram responsáveis por monitorar as situações que colocam o exame em estado de ameaça.
Ela também destaca que a credibilidade de outras provas e relatórios estatísticos desenvolvidos pelo Inep podem ser afetados caso haja alguma intercorrência durante a aplicação do exame desse ano. “Precisam fazer ainda em 2021 o Saeb, concluir o Censo da Educação Superior e aplicar o Revalida”, comenta.
Credibilidade em xeque
Em entrevista ao Jornal da USP, Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ex-Ministro da Educação, falou da necessidade de uma logística muito boa para o Enem, processo que foi sendo aprimorado ao longo dos anos, por ser um dos exames educacionais mais complexos do mundo.
Sobre as exonerações, Janine disse ao jornal que a equipe de coordenação do Inep garante segurança de todo o processo de preparação do Enem, não apenas nas etapas anteriores à prova, mas principalmente durante sua execução.
Num ano em que o ministro da Educação declara que o acesso à universidade deveria ser restrito a poucas pessoas e os critérios para conseguir a isenção no Enem deixam de fora da prova diversos estudantes de baixa renda, Maria Inês lamenta a postura da coordenação do ministério e órgãos relacionados, como o Inep.
“Talvez isso acarrete na credibilidade do exame. Não só perante os estudantes, mas também na visão das próprias universidades que fazem uso de seus resultados. Porque o Enem não mobiliza apenas os sonhos dos candidatos, ele impulsiona os da sua família e todo o compromisso da nossa sociedade em relação à geração futura”, comenta.
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