A eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e o processo de saída do Reino Unido da União Europeia colocam em xeque a globalização
Noite de 8 de novembro de 2016, Estados Unidos (EUA). Após o fechamento das seções eleitorais, era chegada a hora da apuração dos votos. Em algumas horas, o mundo iria conhecer quem seria o novo líder da maior potência econômica e militar pelos próximos quatro anos. Se as eleições presidenciais nos EUA já chamam a atenção de todo o planeta, aquela votação em particular tinha um atrativo a mais: a candidatura de Donald Trump pelo Partido Republicano.
O rico empresário, que fizera fortuna no ramo imobiliário, é afeito ao mundo das celebridades, sendo mais conhecido como apresentador do reality show O Aprendiz do que por suas posições políticas. Havia entrado na disputa como franco-atirador, desafiando até mesmo as principais lideranças de seu partido para sair como candidato.
Do outro lado da disputa estava Hillary Clinton, do Partido Democrata. Mulher do ex-presidente Bill Clinton, Hillary tinha no currículo a passagem por expressivos cargos públicos como senadora e secretária de Estado – credenciais que ajudavam a mantê-la sempre como favorita nas pesquisas eleitorais.
A possibilidade de o desafiante republicano ocupar a Casa Branca parecia remota. Sem apoio em seu partido, bancou boa parte da campanha com recursos próprios. Além disso, a candidatura de Trump foi cercada de escândalos. Declarações contra mexicanos e muçulmanos e o vazamento de um áudio no qual dizia impropérios sobre como tratar uma mulher, renderam-lhe acusações de ser xenófobo e misógino. Sua campanha não naufragou por pouco.
Na plataforma do Curso Enem GE, você encontra videoaulas, textos e exercícios sobre esse e todos os outros temas importantes para o Enem e outros vestibulares. Conheça clicando aqui.
Mas, quando o mundo começou a acompanhar em tempo real a apuração dos votos, ficou evidente que a disputa seria acirrada. Nas primeiras horas do dia 9 de novembro veio o anúncio: Donald Trump, de 70 anos, havia sido eleito presidente dos EUA.
A vitória do republicano deixou o mundo estupefato. Isso porque algumas de suas promessas de campanha, se colocadas em prática, teriam o efeito de indispor os EUA com os governos de diversas nações. Trump disse que iria construir um muro na fronteira sul do país, para impedir a entrada de imigrantes ilegais vindos do México. Declarou que barraria a entrada de refugiados, especialmente muçulmanos. Ainda ameaçou iniciar uma guerra comercial com a China e rever a participação dos EUA em acordos de livre-comércio.
Também anunciou que gostaria de restringir a abrangência das parcerias militares com aliados históricos, como Japão, Coreia do Sul e Arábia Saudita. Além disso, é crítico da Otan, a aliança militar que os EUA mantêm com as nações da Europa Ocidental principalmente.
São promessas que representam um desafio ao paradigma da globalização. Aquela ideia de um mundo integrado, em que prevalecem o livre movimento de pessoas, mercadorias e capitais, encontrou um desafiante disposto a romper com essas conexões.
“America First”
Em qualquer disputa eleitoral, a insatisfação com a situação econômica costuma abrir espaço para o avanço de novatos na política. Desde a crise econômica de 2008, quando o mundo todo foi abalado pelo estouro da bolha imobiliária, os EUA tentam se recuperar. Sob a presidência de Barack Obama (2009-2017), o país até retomou o crescimento econômico e o nível de emprego, mas a renda permaneceu estagnada. Foi nesse cenário que a candidatura de Trump sacudiu as eleições norte-americanas. Enquanto Hillary era vista como a continuidade do sistema político vigente, o establishment, Trump surgia como o forasteiro impetuoso, que disparava pesadas críticas e até xingamentos aos políticos que conduziam o país.
Para além do personagem polêmico, Trump foi capaz de seduzir uma expressiva fatia do eleitorado interessado em sua plataforma política. Um dos lemas de sua campanha foi “America First”, algo como “América em primeiro lugar”. Essa marca que Trump quer imprimir em seu governo simboliza a ênfase em medidas para reforçar a posição econômica do país diante de outras nações.
Um exemplo: atribui-se o fechamento de diversas vagas de operários norte-americanos à assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), o bloco econômico formado por EUA, Canadá e México. Esse tratado permitiu que empresas norte-americanas se transferissem para o México e empregassem a mão de obra local, mais barata. Durante a campanha, Trump disparou contra o Nafta e prometeu intimar os executivos das empresas norte-americanas a abrir vagas nos EUA, em vez de levar a produção e os empregos para outras nações.
Quem votou em Trump
A análise do perfil dos eleitores de Trump ajuda a compreender a estratégia do republicano e as razões que o levaram à vitória. De modo geral, é composto de homens brancos, mais velhos, sem formação universitária. Trata-se de um dos estratos da população norte-americana que mais foi afetado economicamente nos últimos anos, com o achatamento da renda e a falta de perspectivas de ascensão social.
Geograficamente, a insatisfação desses eleitores pode ser explicada pela alteração do perfil eleitoral em seis estados nos quais os democratas haviam vencido em 2012 e que deram maioria a Trump em 2016: Flórida, Wisconsin, Michigan, Iowa, Ohio e Pensilvânia. Bastou isso para que garantisse os delegados de que precisava para se tornar presidente. Os cinco últimos fazem parte do chamado rust belt (“cinturão da ferrugem”), que abriga antigas áreas industriais em que há atualmente altos níveis de desemprego, causados pelo fechamento de indústrias.
Como a eleição nos EUA é indireta, a vitória de Trump nesses estados-chave carimbou o triunfo do republicano, mesmo tendo menos votos populares do que Hillary. Com essa estratégia, o empresário buscou atingir uma significativa parcela da população constituída por cidadãos para os quais a globalização trouxe consequências indesejáveis, como a perda de empregos industriais. Foi o suficiente para garantir os votos que o levariam à Casa Branca.
Nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA, Hillary Clinton obteve cerca de 2,9 milhões de votos a mais do que Donald Trump em nível nacional. Ela venceu no voto popular, mas não levou. Isso porque a eleição para presidente é indireta. Os eleitores não votam nos candidatos, mas sim em delegados que formam um Colégio Eleitoral encarregado de definir o presidente.
Cada estado é representado por certo número de delegados, proporcional à sua população. O Colégio Eleitoral de 2016 foi composto de 538 delegados. Em quase todos os estados (exceto Maine e Nebraska), quem vence no voto popular leva todos os delegados ao Colégio Eleitoral, mesmo que a sua vitória tenha sido por poucos votos de diferença. Por causa disso, um candidato pode ter um número maior de votos populares, nacionalmente, e eleger menos delegados ao Colégio Eleitoral. Foi o que aconteceu com Hillary, que não obteve delegados suficientes para se eleger.
Reino Unido fora da União Europeia
Antes da vitória de Trump, os alicerces da globalização já haviam sofrido os primeiros abalos na Europa. Em plebiscito realizado em junho de 2016, os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE), o maior e mais importante bloco econômico do planeta. O chamado Brexit (contração das palavras inglesas “Britain” e ‘”exit”, algo como “saída britânica”) teve o voto de 17,4 milhões de britânicos (51,9%), ante 16,1 milhões (48,1%) que preferiam permanecer na UE.
Ao virar as costas para a UE, os britânicos anunciam que a participação no maior bloco econômico do planeta não lhes traz benefícios, em um sonoro “não” ao processo de globalização. Por trás da decisão dos britânicos está a insatisfação com os mecanismos de integração da UE, que, segundo seus críticos, impõem restrições à autonomia e ferem a soberania das nações. Os eurocéticos britânicos são contra a imigração por achar que os estrangeiros representam uma concorrência em um mercado de trabalho saturado. E questionam os repasses financeiros que os países-membros devem fazer à UE.
Por isso, não surpreende que o perfil demográfico dos britânicos que votaram a favor do Brexit seja bem parecido com o dos eleitores de Trump. Ou seja, de modo geral, trata-se de cidadãos britânicos mais velhos, do sexo masculino, sem nível superior e de renda média. Entre operários e desempregados, o voto também foi majoritariamente pela saída do bloco – novamente, extratos da população mais afetados pela crise econômica.
Interessante também é notar como a distribuição do voto variou geograficamente. O Reino Unido é composto de quatro unidades políticas. Na Inglaterra e no País de Gales prevaleceram o voto pelo Brexit. Já a Escócia e a Irlanda do Norte votaram expressivamente a favor da permanência na UE. Esse resultado expôs a forte divisão política no país. Desapontado com o Brexit, o governo local da Escócia cogita realizar um novo plebiscito, desta vez para decidir se deve permanecer ou deixar o Reino Unido. Em 2014, os escoceses já haviam ido às urnas e decidiram ficar no Reino Unido. Mas, desta vez, a insatisfação com a saída da União Europeia pode estimular uma debandada escocesa.
Logo após o plebiscito, o primeiro-ministro conservador David Cameron, que fez campanha pela permanência na UE, renunciou e foi substituído pela ex-ministra do Interior, Theresa May, que ficou responsável por encaminhar a retirada do bloco. O início da separação está previsto para março, quando o Reino Unido deverá acionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa da UE, dando início formal à saída. De acordo com as regras do bloco, o processo deve durar até dois anos.
Não por acaso, Trump comparou sua vitória ao Brexit, por terem o mesmo sentido de defesa nacionalista dos interesses do país. Num primeiro momento, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, os eleitores responsáveis pelos resultados surpreendentes foram considerados xenófobos, racistas ou simplesmente ignorantes. Mas há também algo mais profundo: um recado do homem comum, que não se vê representado pelos políticos e instituições atuais. São pessoas que acham que há algo de errado na globalização, e deixaram isso evidente por meio de seu voto.