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Estudo

DONALD TRUMP E A CRISE DA GLOBALIZAÇÃO

por Guia do Estudante Atualizado em 25 set 2017, 17h03 - Publicado em
4 set 2017
11h31

A eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e o processo de saída do Reino Unido da União Europeia colocam em xeque a globalização

Noite de 8 de novembro de 2016, Estados Unidos (EUA). Após o fechamento das seções eleitorais, era chegada a hora da apuração dos votos. Em algumas horas, o mundo iria conhecer quem seria o novo líder da maior potência econômica e militar pelos próximos quatro anos. Se as eleições presidenciais nos EUA já chamam a atenção de todo o planeta, aquela votação em particular tinha um atrativo a mais: a candidatura de Donald Trump pelo Partido Republicano.

O rico empresário, que fizera fortuna no ramo imobiliário, é afeito ao mundo das celebridades, sendo mais conhecido como apresentador do reality show O Aprendiz do que por suas posições políticas. Havia entrado na disputa como franco-atirador, desafiando até mesmo as principais lideranças de seu partido para sair como candidato.

Do outro lado da disputa estava Hillary Clinton, do Partido Democrata. Mulher do ex-presidente Bill Clinton, Hillary tinha no currículo a passagem por expressivos cargos públicos como senadora e secretária de Estado – credenciais que ajudavam a mantê-la sempre como favorita nas pesquisas eleitorais.

A possibilidade de o desafiante republicano ocupar a Casa Branca parecia remota. Sem apoio em seu partido, bancou boa parte da campanha com recursos próprios. Além disso, a candidatura de Trump foi cercada de escândalos. Declarações contra mexicanos e muçulmanos e o vazamento de um áudio no qual dizia impropérios sobre como tratar uma mulher, renderam-lhe acusações de ser xenófobo e misógino. Sua campanha não naufragou por pouco.

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Mas, quando o mundo começou a acompanhar em tempo real a apuração dos votos, ficou evidente que a disputa seria acirrada. Nas primeiras horas do dia 9 de novembro veio o anúncio: Donald  Trump, de 70 anos, havia sido eleito presidente dos EUA.

A vitória do republicano deixou o mundo estupefato. Isso porque algumas de suas promessas de campanha, se colocadas em prática, teriam o efeito de indispor os EUA com os governos de diversas nações. Trump disse que iria construir um muro na fronteira sul do país, para impedir a entrada de imigrantes ilegais vindos do México. Declarou que barraria a entrada de refugiados, especialmente muçulmanos. Ainda ameaçou iniciar uma guerra comercial com a China e rever a participação dos EUA em acordos de livre-comércio.

Também anunciou que gostaria de restringir a abrangência das parcerias militares com aliados históricos, como Japão, Coreia do Sul e Arábia Saudita. Além disso, é crítico da Otan, a aliança militar que os EUA mantêm com as nações da Europa Ocidental principalmente.

São promessas que representam um desafio ao paradigma da globalização. Aquela ideia de um mundo integrado, em que prevalecem o livre movimento de pessoas, mercadorias e capitais, encontrou um desafiante disposto a romper com essas conexões.

“America First”

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O presidente dos EUA, Donald Trump, acena durante sua cerimônia de posse em Washington, em 20 de janeiro de 2017
O presidente dos EUA, Donald Trump, acena durante sua cerimônia de posse em Washington, em 20 de janeiro de 2017 (REUTERS/Jim Bourg/Reprodução)

Em qualquer disputa eleitoral, a insatisfação com a situação econômica costuma abrir espaço para o avanço de novatos na política. Desde a crise econômica de 2008, quando o mundo todo foi abalado pelo estouro da bolha imobiliária, os EUA tentam se recuperar. Sob a presidência de Barack Obama (2009-2017), o país até retomou o crescimento econômico e o nível de emprego, mas a renda permaneceu estagnada. Foi nesse cenário que a candidatura de Trump sacudiu as eleições norte-americanas. Enquanto Hillary era vista como a continuidade do sistema político vigente, o establishment, Trump surgia como o forasteiro impetuoso, que disparava pesadas críticas e até xingamentos aos políticos que conduziam o país.

Para além do personagem polêmico, Trump foi capaz de seduzir uma expressiva fatia do eleitorado interessado em sua plataforma política. Um dos lemas de sua campanha foi “America First”, algo como “América em primeiro lugar”. Essa marca que Trump quer imprimir em seu governo simboliza a ênfase em medidas para reforçar a posição econômica do país diante de outras nações.

Um exemplo: atribui-se o fechamento de diversas vagas de operários norte-americanos à assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), o bloco econômico formado por EUA, Canadá e México. Esse tratado permitiu que empresas norte-americanas se transferissem para o México e empregassem a mão de obra local, mais barata. Durante a campanha, Trump disparou contra o Nafta e prometeu intimar os executivos das empresas norte-americanas a abrir vagas nos EUA, em vez de levar a produção e os empregos para outras nações.

Quem votou em Trump

A análise do perfil dos eleitores de Trump ajuda a compreender a estratégia do republicano e as razões que o levaram à vitória. De modo geral, é composto de homens brancos, mais velhos, sem formação universitária. Trata-se de um dos estratos da população norte-americana que mais foi afetado economicamente nos últimos anos, com o achatamento da renda e a falta de perspectivas de ascensão social.

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Geograficamente, a insatisfação desses eleitores pode ser explicada pela alteração do perfil eleitoral em seis estados nos quais os democratas haviam vencido em 2012 e que deram maioria a Trump em 2016: Flórida, Wisconsin, Michigan, Iowa, Ohio e Pensilvânia. Bastou isso para que garantisse os delegados de que precisava para se tornar presidente. Os cinco últimos fazem parte do chamado rust belt (“cinturão da ferrugem”), que abriga antigas áreas industriais em que há atualmente altos níveis de desemprego, causados pelo fechamento de indústrias.

Como a eleição nos EUA é indireta, a vitória de Trump nesses estados-chave carimbou o triunfo do republicano, mesmo tendo menos votos populares do que Hillary. Com essa estratégia, o empresário buscou atingir uma significativa parcela da população constituída por cidadãos para os quais a globalização trouxe consequências indesejáveis, como a perda de empregos industriais. Foi o suficiente para garantir os votos que o levariam à Casa Branca.

Eleições presidenciais nos EUA são indiretas

Nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA, Hillary Clinton obteve cerca de 2,9 milhões de votos a mais do que Donald Trump em nível nacional. Ela venceu no voto popular, mas não levou. Isso porque a eleição para presidente é indireta. Os eleitores não votam nos candidatos, mas sim em delegados que formam um Colégio Eleitoral encarregado de definir o presidente.
Cada estado é representado por certo número de delegados, proporcional à sua população. O Colégio Eleitoral de 2016 foi composto de 538 delegados. Em quase todos os estados (exceto Maine e Nebraska), quem vence no voto popular leva todos os delegados ao Colégio Eleitoral, mesmo que a sua vitória tenha sido por poucos votos de diferença. Por causa disso, um candidato pode ter um número maior de votos populares, nacionalmente, e eleger menos delegados ao Colégio Eleitoral. Foi o que aconteceu com Hillary, que não obteve delegados suficientes para se eleger.

Reino Unido fora da União Europeia

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O ex-primeiro-ministro britânico David Cameron e sua família deixam a residência oficial em Londres, após a vitória do Brexit
O ex-primeiro-ministro britânico David Cameron e sua família deixam a residência oficial em Londres, após a vitória do Brexit (REUTERS/Stefan Wermuth/)

Antes da vitória de Trump, os alicerces da globalização já haviam sofrido os primeiros abalos na Europa. Em plebiscito realizado em junho de 2016, os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE), o maior e mais importante bloco econômico do planeta. O chamado Brexit (contração das palavras inglesas “Britain” e ‘”exit”, algo como “saída britânica”) teve o voto de 17,4 milhões de britânicos (51,9%), ante 16,1 milhões (48,1%) que preferiam permanecer na UE.

Ao virar as costas para a UE, os britânicos anunciam que a participação no maior bloco econômico do planeta não lhes traz benefícios, em um sonoro “não” ao processo de globalização. Por trás da decisão dos britânicos está a insatisfação com os mecanismos de integração da UE, que, segundo seus críticos, impõem restrições à autonomia e ferem a soberania das nações. Os eurocéticos britânicos são contra a imigração por achar que os estrangeiros representam uma concorrência em um mercado de trabalho saturado. E questionam os repasses financeiros que os países-membros devem fazer à UE.

Por isso, não surpreende que o perfil demográfico dos britânicos que votaram a favor do Brexit seja bem parecido com o dos eleitores de Trump. Ou seja, de modo geral, trata-se de cidadãos britânicos mais velhos, do sexo masculino, sem nível superior e de renda média. Entre operários e desempregados, o voto também foi majoritariamente pela saída do bloco – novamente, extratos da população mais afetados pela crise econômica.

Interessante também é notar como a distribuição do voto variou geograficamente. O Reino Unido é composto de quatro unidades políticas. Na Inglaterra e no País de Gales prevaleceram o voto pelo Brexit. Já a Escócia e a Irlanda do Norte votaram expressivamente a favor da permanência na UE. Esse resultado expôs a forte divisão política no país. Desapontado com o Brexit, o governo local da Escócia cogita realizar um novo plebiscito, desta vez para decidir se deve permanecer ou deixar o Reino Unido. Em 2014, os escoceses já haviam ido às urnas e decidiram ficar no Reino Unido. Mas, desta vez, a insatisfação com a saída da União Europeia pode estimular uma debandada escocesa.

Logo após o plebiscito, o primeiro-ministro conservador David Cameron, que fez campanha pela permanência na UE, renunciou e foi substituído pela ex-ministra do Interior, Theresa May, que ficou responsável por encaminhar a retirada do bloco. O início da separação está previsto para março, quando o Reino Unido deverá acionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa da UE, dando início formal à saída. De acordo com as regras do bloco, o processo deve durar até dois anos.

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Não por acaso, Trump comparou sua vitória ao Brexit, por terem o mesmo sentido de defesa nacionalista dos interesses do país. Num primeiro momento, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, os eleitores responsáveis pelos resultados surpreendentes foram considerados xenófobos, racistas ou simplesmente ignorantes. Mas há também algo mais profundo: um recado do homem comum, que não se vê representado pelos políticos e instituições atuais. São pessoas que acham que há algo de errado na globalização, e deixaram isso evidente por meio de seu voto.

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OS PILARES DA GLOBALIZAÇÃO

Funcionário limpa fachada do Mc Donald’s em Pequim, na capital chinesa
Funcionário limpa fachada do Mc Donald’s em Pequim, na capital chinesa (Kevin Lee/)

Caracterizado por um mundo integrado pelo comércio, com menos intervenção estatal e maior flexibilidade no mercado de trabalho, o fenômeno é mais antigo do que parece

A globalização, tão contestada por Donald Trump e pelos partidários do Brexit, é entendida como o processo de integração entre povos, empresas, governos e mercadorias ao redor do planeta. Um mundo globalizado é aquele em que eventos políticos, econômicos, culturais e sociais estão interconectados e onde um acontecimento em um lugar tem a capacidade de ecoar por outros cantos do globo.

Suas origens remontam aos séculos XV e XVI, com o início da expansão ultramarina europeia. A descoberta de novas terras e rotas comerciais permitiu a formação de enormes impérios coloniais na Europa. Posteriormente, o acúmulo de riquezas forneceu a base para a Revolução Industrial no fim do século XVIII, que, com o tempo, desenvolveu o trabalho assalariado e o mercado consumidor.

As descobertas científicas e as invenções provocaram enorme expansão dos setores industrializados e ampliaram o mercado para a exportação de produtos. No fim do século XIX surgiram as grandes empresas multinacionais. O século seguinte verá o fortalecimento dessas corporações, bem como a consolidação dos Estados Unidos (EUA) como a nação capitalista mais poderosa do planeta.

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O Neoliberalismo

Pode-se afirmar que a atual fase da globalização tem como pilares econômicos o neoliberalismo. Trata-se do conjunto de medidas adotado pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013) no Reino Unido e pelo presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004) a partir dos anos 1980.

O neoliberalismo consolidou-se como o sistema econômico dominante a partir dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria. De modo geral, o ideário neoliberal é constituído por alguns pontos centrais:

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• abertura comercial e financeira para promover o livre-comércio e ampla possibilidade de atuação das empresas em nível internacional;

• diminuição do papel do Estado na economia, por meio de privatizações, e fim do Estado de Bem-Estar Social (welfare state) vigente principalmente na Europa, com o corte nos gastos públicos e na oferta de serviços sociais pelo governo;

• desregulamentação financeira, ou seja, deixar o mercado livre para ditar preços e condições de atuação, sem a interferência do Estado;

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• flexibilização do mercado de trabalho. As reivindicações trabalhistas são encaradas como obstáculos ao crescimento econômico; propõe uma nova divisão internacional do trabalho, com migração de empregos industriais para os países em desenvolvimento.

OMC e blocos econômicos

Um elemento central da globalização é o livre-comércio, ou seja, a criação de um sistema em que bens e serviços são comercializados sem restrições tarifárias. Nesse sentido, o papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) na expansão comercial foi fundamental, principalmente na primeira década após sua criação, em 1995. Seu objetivo principal é estimular a abertura das economias nacionais e eliminar o chamado protecionismo ± quando um país impõe taxas ou outras barreiras comerciais para restringir a importação de produtos e proteger sua própria produção interna.

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Outro pilar importante da globalização e do livre-comércio é a formação de blocos econômicos. Sob a economia globalizada, esses grupos reforçam a tendência de abrir as fronteiras das nações ao livre fluxo de capitais, ao reduzir barreiras alfandegárias e coibir práticas protecionistas e regulamentações nacionais.

A formação de blocos econômicos acelerou o comércio mundial. Antes, qualquer produto importado chegava ao consumidor com um valor significativamente mais alto, em função das taxações impostas ao cruzar a alfândega. Os acordos entre os países reduziram e em alguns casos acabaram com essas barreiras comerciais.

Existem quatro modelos básicos de blocos econômicos:

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1. Zona de livre-comércio, em que há redução ou eliminação de tarifas alfandegárias. Exemplo: Nafta;

2. União aduaneira, que, além de abrir o mercado interno, define regras para o comércio com nações de fora do bloco. Exemplo: Mercosul;

3. Mercado comum, com livre circulação de capitais, serviços e pessoas;

4. União econômica e monetária, em que os países adotam a mesma política de desenvolvimento e uma moeda única. Exemplo: União Europeia.

As contestações a esses fundamentos da globalização sempre existiram. Mas, ironicamente, coube ao Reino Unido e aos EUA liderar os mais expressivos movimentos a desafiar a atual ordem – justamente as duas nações que mais defenderam os valores neoliberais.

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UMA NOVA ORDEM ANTIGLOBAL

Sem-teto se abriga em estação de metrô próxima à Casa Branca, sede do governo dos EUA
Sem-teto se abriga em estação de metrô próxima à Casa Branca, sede do governo dos EUA (Kevin Lamarque / Reuters/)

Crise no livre-comércio, perda de postos de trabalho nos países desenvolvidos e manutenção da desigualdade social levam a questionamentos sobre a globalização

No início dos anos 1990, o mundo parecia ter entrado em uma fase de amplas oportunidades para todos. Com o fim da Guerra Fria e a consolidação de uma Nova Ordem Mundial, sob a liderança hegemônica dos Estados Unidos (EUA), nada parecia deter o processo de globalização e as novas possibilidades de desenvolvimento que ela prometia. Sem o antagonismo comunista representado pela União Soviética (URSS), o capitalismo passou a reinar absoluto no planeta.

As políticas neoliberais deram a sustentação econômica à globalização, enquanto o avanço da tecnologia da informação, particularmente da internet, tornou viável a interconexão e aproximação entre as diversas nações. Ao longo do tempo, porém, esse sistema começou a mostrar algumas fissuras. Ao contrário do que pregavam alguns dos principais teóricos da globalização, o aumento da integração mundial e a ampliação do comércio não promoveram o bem-estar geral dos indivíduos e a redução das desigualdades entre as nações. A globalização fez alguns vencedores, mas deixou muitos perdedores pelo caminho. E é nesse fosso de desigualdade que começam a surgir as reações ao sistema de integração econômica mundial.

Crise de 2008

Os sinais mais evidentes de que havia algo de errado com a globalização vieram em 2008, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA. Começava ali a maior crise econômica no mundo desde a Grande Depressão dos anos 1930.

A origem da crise está ligada aos empréstimos que os bancos norte-americanos concederam a milhões de clientes para comprar suas casas, entre 2002 e 2008. Mesmo sabendo que muitas pessoas não tinham boa avaliação como pagadores, os bancos autorizaram a liberação desses créditos.

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Essa decisão só foi possível devido a um efeito importante da globalização que é a desregulamentação do mercado financeiro. Antes o governo impunha restrições para a concessão de empréstimos, uma medida que servia para dar segurança ao sistema bancário. Sem essas regras, os bancos ficaram livres para conceder crédito e ampliar seus lucros. Como era fácil obter empréstimos e os juros estavam baixos, a procura por imóveis se intensificou, elevando os preços.

Posteriormente, quando os juros subiram, as prestações dos financiamentos dos imóveis ficaram mais caras e muitos compradores pararam de pagar. Isso provocou uma reação em cadeia que afetou todo o sistema financeiro norte-americano. As relações de interdependência nesta era de economia globalizada trataram de espalhar a crise pelo globo, afetando dos países ricos às nações em desenvolvimento.

A resposta dos governos para a crise tornou ainda mais evidente os desequilíbrios provocados pela globalização. Os EUA e os integrantes da União Europeia (UE) injetaram trilhões de dólares para socorrer os bancos utilizando dinheiro público proveniente dos impostos pagos por toda a população. O argumento era o de que, sem isso, haveria uma quebra geral, com consequências piores para o mundo inteiro. Em diferentes graus, outras nações afetadas seguiram a mesma receita.

A medida, contudo, não foi capaz de reativar de forma completa a economia e ainda por cima deixou vários países endividados. A consequência é que os governos cortaram ainda mais seus gastos em serviços públicos e benefícios sociais. Tudo isso acelerou o desmantelamento do já enfraquecido Estado de Bem-Estar Social (welfare state). Neste modelo, que surgiu na Europa após a II Guerra Mundial, o Estado se compromete a garantir padrões mínimos de saúde, educação e habitação, concebendo a proteção social como um direito dos cidadãos.

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Livre-comércio na mira

A recessão causada pela crise de 2008 levou diversos países a rever suas políticas econômicas. Para proteger os empregos e a produção local, muitos governos passaram a questionar o livre-comércio, mais especificamente os benefícios dos blocos econômicos.

Nos anos 1990, período que coincide com os primeiros anos dessa fase mais recente da globalização, surgiram diversos blocos econômicos. O Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (1995), a UE (1992) e o Mercosul (1991) são alguns exemplos. A ideia era que, a partir da redução ou da eliminação de tarifas de importação de diversos bens e serviços, as nações pertencentes ao mesmo bloco intensificassem as trocas comerciais entre si, em um processo que ampliaria a geração de empregos e promoveria o desenvolvimento.

No entanto, a abertura comercial expõe o país à competitividade típica do capitalismo e do liberalismo econômico. Ao eliminar as barreiras à importação, os bens que entram no país disputam mercado com os produtos nacionais. Aquele que tem maior vantagem competitiva, seja por cobrar menos impostos, por pagar baixos salários ou por dispor de um câmbio mais favorável para as exportações, vai se dar melhor na conquista pelo mercado consumidor. E, dependendo do tipo de acordo comercial, a entrada de produtos estrangeiros pode afetar todo um setor da economia de um país.

Fora do TPP

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Ainda durante a campanha presidencial, Trump identificou como uma das fragilidades econômicas do país as relações comerciais com o resto do mundo. Segundo o novo presidente, sua gestão dará prioridade a acordos bilaterais “justos”, em vez de blocos econômicos, com o objetivo de levar de volta aos EUA empregos e indústrias.

Por isso, não foi nenhuma surpresa que uma das primeiras ações de Trump como presidente tenha sido a assinatura de um decreto que retira o país do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês). Criado em fevereiro de 2016, o TPP nasceu para se tornar a maior área de livre-comércio do mundo, abrangendo 12 nações com uma população somada de 800 milhões de pessoas e responsáveis por 40% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Entre seus membros estavam duas das três maiores economias do mundo ± EUA e Japão.

Com uma canetada, Trump retirou os EUA do TPP e praticamente inviabilizou o acordo, que terá dificuldades para ser levado adiante sem a presença norte-americana. Dessa forma, Trump desferiu o maior golpe contra o livre-comércio até agora, sepultando um tratado que iria diminuir ou até mesmo eliminar cerca de 18 mil tarifas de importação, abrangendo de commodities agrícolas até bens industrializados.

Divisão Internacional do Trabalho

Fábrica que produz máscaras do presidente dos EUA, Donald Trump, na China
Fábrica que produz máscaras do presidente dos EUA, Donald Trump, na China (Aly Song / Reuters/)

Durante a assinatura do decreto que retirou os EUA do TPP, Trump justificou: “Devemos proteger nossas fronteiras dos estragos causados por outros países que fabricam os nossos produtos, roubam nossas empresas e destroem nossos postos de trabalho”.

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Essa declaração tem como alvo as novas relações de trabalho que surgiram no atual estágio da globalização. Principalmente a partir dos anos 1990, houve uma mudança significativa na Divisão Internacional do Trabalho (DIT), como é chamada a distribuição das atividades produtivas e dos serviços entre os países do mundo.

A globalização facilitou a livre circulação de bens e capitais, o que permitiu às multinacionais expandirem ainda mais sua atuação ao redor do mundo. Diante da maior competitividade comercial imposta pelo neoliberalismo, essas empresas começaram a espalhar sua cadeia produtiva para os chamados países periféricos com o objetivo de reduzir custos. Suas fábricas passaram a ser montadas em nações como China, México, Coreia do Sul, Tailândia e o próprio Brasil, atraídas pela maior oferta de matéria-prima e energia, mão de obra mais barata, isenções fiscais e legislação trabalhista menos rígida. Exemplo disso é a Apple, que, a partir de sua sede nos EUA, distribui seu processo produtivo por todo o globo, utilizando trabalhadores da Europa, da África e da Ásia para fabricar o iPhone.

O emprego nos EUA

É por isso que Trump chama o Nafta, o bloco econômico que inclui EUA, México e Canadá, de “desastre”. O Nafta permite que empresas norte-americanas se instalem no México para aproveitar os menores custos de produção do vizinho latino-americano. No cerne de sua crítica está a perda dos empregos na indústria norte-americana para os trabalhadores mexicanos, que Trump promete agora recuperar. Uma revisão sobre a participação dos EUA no Nafta já está em estudo pelo governo.

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Em boa medida, a nova DIT e a integração comercial propostas pela globalização geraram resultados econômicos distintos para os povos das diferentes nações envolvidas nesse processo. Um estudo do Banco Mundial mostrou que, entre 1988 e 2008, o extrato da população que teve maior incremento na renda foram os trabalhadores de nações em desenvolvimento, principalmente de China e Índia, e a elite financeira dos países ricos. Em compensação, a classe média trabalhadora dos países ricos, principalmente dos EUA e da Europa, tiveram as maiores perdas na renda. Contudo, vale ressaltar que, apesar dos recentes avanços, os salários dos trabalhadores chineses continuam bem abaixo da média do trabalhador norte-americano. Enquanto a renda per capita no país asiático em 2015 era de 7.930 dólares ao ano, nos EUA o valor alcançava 55.980 dólares.

Outro efeito dessas mudanças no mercado de trabalho norte-americano é a transferência dos empregos, que migraram do setor industrial para o de serviços. Se durante boa parte do século XX a indústria era o motor da economia nos EUA e a principal geradora de emprego no país, a globalização alterou esse perfil. O setor de serviços, que compreende atividades que incluem comércio, transportes, saúde, educação, alimentação e entretenimento, tornou-se o segmento que mais contrata funcionários nos EUA. A gigante do setor varejista Walmart emprega 2,1 milhões de funcionários, enquanto a empresa do setor industrial que mais contrata, a HP, tem 324 mil funcionários.

O problema é que, apesar de empregar muitos funcionários, o setor de serviço oferece salários menores. É verdade que empresas como a Apple contam com uma equipe de designers e programadores muito bem pagos. Mas a maioria dos empregados no setor de serviços, como garçons, vendedores e professores, recebe bem menos e tem poucas perspectivas de ascensão profissional.

Protecionismo

Com o objetivo de defender os empregos na indústria, ainda durante sua campanha presidencial, Trump atacou duramente empresas dos EUA que se mudam do país, em busca de custo mais baixo do trabalho e vantagens fiscais, e com isso eliminam vagas dos trabalhadores norte-americanos. Entre as medidas que prometeu adotar, está a taxação em até 45% para os produtos dessas empresas que vierem do México e da China.

Além disso, a política econômica esboçada por Trump promete sacudir alguns paradigmas da ordem global. Ao defender o protecionismo, o presidente norte-americano sinaliza com medidas para erguer barreiras à importação, com o objetivo de garantir que os produtos norte-americanos tenham um mercado assegurado em seu próprio país.

Sabe-se, porém, que práticas protecionistas nunca deixaram de existir. Historicamente, muitas nações que defendem uma posição de livre-comércio puseram em prática políticas protecionistas, com o objetivo de assegurar mercado para sua produção doméstica. Países em desenvolvimento denunciam há anos que as grandes potências preconizam formalmente a liberdade de circulação de bens e serviços, mas, na prática, mantêm subsídios e outras políticas que favorecem seus produtores, prejudicando os de outras nações.

Além disso, a adoção de práticas protecionistas não seria exclusividade dos EUA. As barreiras ao comércio têm crescido no mundo todo desde a eclosão da crise de 2008, como uma forma de defender os empregos locais. O problema é que, se a maioria dos países eleva suas taxas de importação, uma consequência óbvia é a retração do comércio em nível mundial – afinal, as exportações tendem a cair também. Órgãos como a OMC creditam a lenta recuperação da economia mundial a essa onda protecionista.

O comércio com a China

A percepção de que a China está levando vantagem neste grande jogo da globalização levou Trump a apontar o país asiático como o principal rival a ser combatido na arena econômica. As duas maiores economias do mundo, entretanto, mantêm uma relação estreita. A entrada da China na OMC, em 2001, ampliou as relações comerciais da China com o mundo e, em especial, com os EUA. Mas os norte-americanos exportam para a China produtos num valor bem menor do que o de suas importações dos chineses. Ou seja, a balança comercial dos EUA com a China é deficitária. Somente em 2016, o saldo negativo atingiu 347 bilhões de dólares.

Mas qualquer medida agressiva do presidente norte-americano poderá provocar retaliações chinesas. Numa eventual guerra comercial, analistas citam a possibilidade de a China reduzir as compras da soja dos EUA ou de recusar os aviões da Boeing, cujas vendas no país atingiram o valor de 15 bilhões de dólares em 2015.

Diante das incertezas trazidas para a economia mundial pela nova administração norte-americana, um dado curioso é a defesa da globalização e do livre-comércio feita pelo presidente chinês, Xi Jinping, no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro. Sem citar Trump, o dirigente da China contrapôs-se de forma cabal à sua política. E o mundo assiste ao governante do mais importante país de regime formalmente comunista defender uma ordem econômica que o presidente da maior nação capitalista parece interessado em chacoalhar.

Da teoria à prática

De modo geral, as principais propostas de Trump na esfera econômica questionam os fundamentos da ordem globalizada vigente. Mas, se o diagnóstico do presidente norte-americano coincide com a maior parte das análises sobre os desequilíbrios provocados pela globalização, o remédio proposto para esses males é motivo de controvérsia.

Para muitos analistas, a proposta de trazer indústrias de volta aos EUA é de aplicação difícil, ou até impossível. Seria necessário descumprir a legislação internacional à qual os EUA estão submetidos, como a da OMC. Ainda que se resolvesse esse ponto, estaria criado um grande problema, porque as empresas teriam de elevar o preço de venda dos produtos, provocando inflação. Isso porque o custo de fabricação nos EUA, principalmente por causa dos salários mais altos, é muito maior do que nos países para os quais as fábricas foram transferidas. A elevação de preços para os consumidores finais levaria a uma queda nas vendas, com reflexos diretos no crescimento econômico do país.

Há também a questão da automação: diversas funções executadas até poucos anos atrás por operários norte-americanos podem hoje ser cumpridas por robôs. Isso quer dizer que, mesmo se Trump conseguir trazer as empresas de volta aos EUA, isso não significaria a abertura de vagas em número tão expressivo.

Além disso, as vagas criadas na indústria são bem diferentes das existentes há 20 anos. As funções atuais exigem conhecimento maior da tecnologia de informação, nas quais o trabalhador passa a atuar diante de uma tela de computador, em vez de operar um forno quente, por exemplo. Há, portanto, necessidade de melhorar a qualificação da mão de obra para operar os novos equipamentos.

Curioso notar como os EUA se voltam contra os princípios de uma ordem econômica que sempre defendeu. Críticas de anos atrás sobre como a globalização alijava as nações mais pobres do processo de integração eram ignoradas por sucessivos governos norte-americanos. A percepção de que esses desequilíbrios também atingem sua população leva o país agora a querer mudar as regras do jogo.

Mas o fato é que, depois de décadas de Nafta e de OMC, as relações dos EUA com o México, com a China e com outros parceiros comerciais passaram a estar integradas em vários aspectos. Essa interdependência torna difícil a operação de desmontar as engrenagens do sistema, tal como Trump almeja. A questão que se coloca é se a tentativa de romper os elos dessa cadeia não provocaria mais estragos do que benefícios à economia dos EUA – e do mundo.

Os ricos ainda mais ricos

A globalização gerou enormes desigualdades econômicas e sociais. É o que afirma a organização não governamental Oxfam, com base em dados do banco de investimento suíço Credit Suisse. A concentração de riquezas atingiu o maior nível da história em 2015: 1% da população mundial detém 50% de toda a riqueza do planeta. Essa parcela mais rica teve aumento de renda 182 vezes maior do que os 10% mais pobres, no período entre 1988 e 2011.
Em outro dado revelador das desigualdades, a Oxfam aponta que os oito homens mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio que 3,6 bilhões de pessoas, a metade mais pobre do planeta.
Essa disparidade é resultado de um sistema vantajoso para poucos eleitos em detrimento da maioria, que desencadeia um círculo vicioso: quem tem menos recursos vive em condições mais precárias de saúde, habitação e educação. Isso, por sua vez, resulta em menores oportunidades de conseguir trabalho com remuneração adequada.

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NAÇÕES DESUNIDAS

Barreira que separa EUA e México, na praia de Tijuana: Trump quer ampliar o muro para impedir a entrada de imigrantes
Barreira que separa EUA e México, na praia de Tijuana: Trump quer ampliar o muro para impedir a entrada de imigrantes (Jorge Duenes / Reuters/)

Movimentos nacionalistas e manifestações xenófobas crescem nos países desenvolvidos como resposta à crise econômica e ao aumento da imigração

A eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos (EUA) e o Brexit, como ficou conhecida a decisão dos eleitores do Reino Unido de deixar a União Europeia (UE), exprimem a reação de amplos setores da população aos frustrantes resultados econômicos dos últimos anos. Também são sintomas de uma mudança profunda em curso na sociedade das duas nações. A vitória de Trump e o Brexit tornaram ainda mais visível um fenômeno que dialoga diretamente com a atual onda de rejeição ao mundo globalizado: a ascensão do nacionalismo.

Esse processo está ligado à crise econômica iniciada em 2008, que ainda não foi totalmente superada. Nestes quase dez anos, parcelas expressivas da classe trabalhadora perceberam que as perspectivas de ascensão social e de aumento da renda estão cada vez mais reduzidas. É o cenário ideal para o surgimento de lideranças mais radicais, que prometem uma sacudida no atual estado das coisas.

Na ordem econômica proposta pela globalização, o aumento da imigração e do livre movimento de pessoas começam a enfrentar uma resistência que tem como base o fortalecimento do sentimento de identidade nacional. Quando Trump promete ampliar o muro na fronteira sul para impedir a entrada de imigrantes ilegais vindos do México ou quando o Reino Unido inicia os procedimentos para se separar do maior bloco econômico do planeta e impedir a entrada de trabalhadores de outros países, a mensagem deixada é bem clara: os estrangeiros não são bem-vindos.

De modo geral, o nacionalismo pode ser entendido de duas formas. Ele expressa um sentimento cívico, de lealdade à pátria. Nesse sentido, etnia, língua, religião e história são vistos como elementos unificadores de uma nação. Mas o nacionalismo também pode ser utilizado como uma ideologia, que explora tais valores de identidade nacional para alcançar objetivos políticos. A eleição de Trump e o fenômeno do Brexit são exemplos dessa visão de mundo, na qual as relações com outras nações acabam sendo definidas mais em termos de competição, onde prevalecem as rivalidades nacionais. Na mão de líderes populistas, o nacionalismo é usado como poderosa ferramenta política.

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Nós contra eles

No mundo globalizado, a ideia de uma governança global, com base na colaboração entre os países para a promoção do desenvolvimento, deu origem a instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), cujo principal objetivo é articular a cooperação internacional para resolver problemas econômicos, sociais e humanitários. É verdade que essa articulação sempre encontrou enormes dificuldades para ser colocada em prática.

Mas agora a governança global está ameaçada, porque o líder da nação mais poderosa do planeta rejeita explicitamente os seus fundamentos. Para Trump, a ONU é uma “perda de tempo e dinheiro”, desprezando o papel da instituição como fórum para discussão e resolução de problemas entre os países.

Até a cooperação militar que os EUA mantêm com diversos parceiros foi criticada por Trump. O presidente chamou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar impulsionada pelos EUA, de “obsoleta”, além de reclamar que o governo norte-americano arca com a maior parte dos seus custos. Essa postura mostra um menosprezo de Trump em relação aos pilares que sustentam a chamada Pax Americana.

A Pax Americana é o nome dado ao período que começa após a II Guerra Mundial (1939-1945), no qual os EUA projetaram seu poder pelo mundo, disseminando os valores da democracia e do liberalismo econômico. Para a maior parte das nações era mais conveniente embarcar no trem governado pelos norte-americanos do que se opor a essa liderança. Com o desmantelamento da União Soviética (URSS), em 1991, o poderio econômico e militar dos EUA se tornou tão desproporcional em relação ao resto do mundo que o país se firmou como o principal responsável pelo equilíbrio entre as potências mundiais.

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Agora, ao flertar com o isolacionismo, Trump quer que os EUA evitem uma postura ativa em assuntos que não dizem respeito aos interesses norte-americanos mais imediatos. E não só isso. Sua visão de mundo e de política externa tem como alicerce o “America First“. Ao sustentar que a América deve vir em primeiro lugar, Trump se apresenta como expoente do tipo de nacionalismo que considera as relações internacionais uma grande competição, um jogo no qual o outro é sempre um inimigo e que os ganhos de um país estão sempre atrelados às perdas dos outros.

Soberania nacional

O Brexit também tem suas raízes nesse tipo de nacionalismo. Ao decidir abandonar o maior e mais importante bloco econômico do mundo, o Reino Unido reafirma a importância de dois valores muito caros ao sentimento nacionalista britânico: a soberania sobre suas decisões políticas e econômicas e o controle das fronteiras nacionais.

Ao longo dos anos, a UE criou mecanismos que aprofundaram a integração entre os países-membros, principalmente em três aspectos:

• Econômico: estabeleceu-se um mercado comum, com a eliminação das tarifas alfandegárias e a adoção de políticas econômicas em comum. Em 2001, foi adotada uma moeda única – o euro – embora nem todos os países-
membros a adotem, como é o caso do Reino Unido.

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• Político: o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 2009, é uma espécie da Constituição Europeia. Ela define a atuação de instituições como o Banco Central Europeu, que estabelece a política monetária para os países da zona do euro, e o Parlamento Europeu, que tem poder de decisão em alguns assuntos internos dos países-membros.

• Migratório: a livre circulação de pessoas é garantida pelo Espaço Schengen. Composto de 26 nações europeias, ele permite aos habitantes cruzar livremente as fronteiras – o Reino Unido não participa, mas adota algumas políticas comuns para a imigração.

Quando as várias nações do continente decidiram estabelecer ações de forma coletiva e adotar as regras do bloco, cada uma abriu mão parcialmente de sua soberania, em favor do acesso preferencial ao mercado ampliado proporcionado pela UE. Esse projeto ousado transcendia as rivalidades nacionais em favor de um projeto que integraria as nações pelo comércio, prometendo ganhos para todos. Mas, por mais que haja um esforço de unidade, os interesses específicos de cada país não desapareceram por encanto.

A decisão do Reino Unido é vista como uma forma de recuperar a autonomia sobre suas decisões políticas e econômicas. O plano de retirada prevê que o Reino Unido deixe o mercado comum europeu, que possibilita a livre circulação de mercadorias, trabalhadores, serviços e capitais entre os participantes, como se o bloco fosse um único país. Com isso, perdem os exportadores britânicos, que deixarão de ter acesso livre a um mercado que reúne 500 milhões de consumidores. O setor financeiro também será afetado, já que os bancos britânicos têm ampla atuação em toda a UE.

Em compensação, ao interromper a mobilidade de trabalhadores entre os países-membros do bloco, o governo britânico retoma plenamente o controle de suas fronteiras. E foi justamente esse o fator que mais pesou entre o eleitorado que aderiu ao Brexit. Entre 1971 e 2015 o percentual de estrangeiros vivendo no Reino Unido saltou de 5,8% para 13,1%. Em um momento de empregos escassos e serviços públicos sobrecarregados, esse ponto foi bastante explorado na campanha a favor do Brexit.

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O medo do estrangeiro

Protesto em aeroporto de Washington D.C. (EUA) contra a decisão de Donald Trump de barrar imigrantes, em janeiro de 2017
Protesto em aeroporto de Washington D.C. (EUA) contra a decisão de Donald Trump de barrar imigrantes, em janeiro de 2017 (Mike Theiler / Reuters/Reprodução)

O fato é que a questão do livre trânsito de pessoas sempre foi um aspecto frágil da globalização. O desenvolvimento tecnológico dos últimos anos proporcionou enormes avanços nos meios de transporte, o que ajudou a intensificar os movimentos migratórios em diversas partes do mundo. O desenvolvimento das telecomunicações, por sua vez, facilitou as transferências bancárias, permitindo a um imigrante africano que mora na Europa enviar parte de seu salário mensalmente para ajudar os familiares que vivem em sua terra natal.

Mas, enquanto o fluxo de capitais e mercadorias sempre foi estimulado pelos defensores do mundo globalizado, a imigração foi e continua sendo um tema polêmico, principalmente nos países economicamente desenvolvidos. No pós-guerra, quando havia necessidade de mão de obra nos principais países europeus, como Reino Unido, Alemanha e França, a entrada de imigrantes de países pobres até era facilitada, e eles chegaram em peso ao continente.

Contudo, a integração desses contingentes à nova situação nem sempre foi tranquila. Muitos argelinos que vivem na França, turcos moradores da Alemanha ou jamaicanos residentes na Inglaterra sentem-se marginalizados, vivendo nas periferias das grandes cidades e com acesso restrito ao mercado de trabalho. Esse é um dos fatores que explicam as revoltas de adolescentes em subúrbios franceses, frequentes nos últimos anos.

Em uma situação de crise, os ânimos nacionalistas tendem a se aflorar. Muitos britânicos, por exemplo, não aceitam que uma pessoa que veio de outro país possa compartilhar os mesmos direitos de quem nasceu ali. E esse nacionalismo pode descambar para a xenofobia.

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O termo, derivado do grego, significa literalmente “medo do estrangeiro” e é usado para definir o receio e a hostilidade que muitas pessoas sentem em relação a cidadãos de outras nacionalidades que vivem em uma mesma cidade ou país. Além da questão econômica, principalmente relacionada ao mercado de trabalho, o estranhamento em relação a hábitos culturais ou costumes religiosos diferentes pode acirrar esses sentimentos xenófobos. Muitas vezes terminam em ódio e violência.

No entanto, a imigração e a exposição a diferentes hábitos e culturas fazem parte da história da humanidade. Muitas nações construíram suas identidades a partir do contato com outras culturas e cresceram economicamente com o esforço do trabalhador imigrante. Mesmo na Europa atual, com as taxas de natalidade em declínio, projeções apontam que faltará mão de obra no futuro para sustentar o crescimento econômico. E, nesse sentido, a aceitação do trabalhador imigrante seria fundamental para driblar essa encruzilhada demográfica.

Extrema direita

Grafite em Bristol, no Reino Unido, ilustra o presidente dos EUA, Donald Trump (à esq.), e o deputado conservador Boris Johnson, um dos líderes do Brexit
Grafite em Bristol, no Reino Unido, ilustra o presidente dos EUA, Donald Trump (à esq.), e o deputado conservador Boris Johnson, um dos líderes do Brexit (Geoff Caddick / AFP/)

Para muitos políticos, no entanto, a xenofobia é um combustível altamente eficiente para produzir ganhos eleitorais. Essa postura explora os ressentimentos de pessoas que perderam o emprego ou estão trabalhando por um salário menor e para quem imigrantes e refugiados são vistos como concorrentes na disputa pelas poucas vagas no mercado de trabalho. E é manipulando esse sentimento de frustração que os partidos de extrema direita se apoiam para disseminar o medo e angariar votos.

Essa política ajudou Trump a conquistar grande parcela de seus eleitores. Rotular o estrangeiro como inimigo também é parte da estratégia por trás da decisão de suspender por 120 dias o programa de admissão de refugiados e de vetar por 90 dias a entrada de cidadãos de sete países (Iêmen, Irã, Iraque, Líbia, Síria, Somália e Sudão), a pretexto de combate ao terrorismo. O decreto foi bloqueado, temporariamente, a partir da decisão de um juiz federal, mas serviu para mostrar que Trump não tem pudor em discriminar sociedades inteiras se isso reforçar a sua imagem de tolerância zero ao terrorismo.

No Reino Unido, o grande patrocinador da campanha pelo Brexit foi o Ukip, um partido de extrema direita, com uma plataforma xenófoba e eurocética. No Velho Continente, por sinal, quase toda nação tem um partido que defende ideias anti-imigratórias. E, em alguns desses países, essas agremiações já começam a despontar como protagonistas no cenário político.

Não se pode dizer que haja homogeneidade entre todos os partidos de extrema direita na Europa, mas existem traços que os aproximam. Esses partidos enfatizam os valores nacionais, acusando os estrangeiros de ser uma ameaça à herança cultural que dizem defender. E desafiam o liberalismo, ao propor soluções autoritárias para os problemas econômicos enfrentados pelos países. Os eleitores dessas forças políticas estão mais presentes em pequenas cidades e no ambiente rural do que nas metrópoles europeias.

As eleições na França

Marine Le Pen, da França, e Geert Wilders, da Holanda, são líderes da extrema direita em seus países
Marine Le Pen, da França, e Geert Wilders, da Holanda, são líderes da extrema direita em seus países (Alessandro Garofalo / Reuters/)

A ascensão da extrema direita está ligada também à crise de representação política dos velhos partidos na Europa. Os tradicionais eleitores dessas agremiações, muitas vezes, deixam de comparecer às urnas, numa espécie de protesto silencioso. Um exemplo disso ocorreu nas eleições ao Parlamento Europeu de 2014. Nesse pleito, uma das explicações para o crescimento dos partidos de extrema direita é o fato de que a taxa de abstenção foi de aproximadamente 60%, ou seja, mais da metade dos eleitores nem foi votar.

Em países como Holanda, Itália e Grécia, a ascensão ao poder de um partido com uma plataforma antieuropeia começa a se tornar cada vez mais factível. Na França, a extrema direita chegou perto de conquistar a vitória nas eleições presidenciais de abril e maio deste ano. A candidata Marine Le Pen, do partido Frente Nacional (FN), venceu o primeiro turno, mas acabou sendo derrotada por Emmanuel Macron, líder do partido República em Marcha, no segundo turno.

A Frente Nacional (FN), fundada na década de 1970, desenvolve posições anti-imigrantes e é contra a UE, além de defender políticas protecionistas. Durante a campanha, Le Pen disse que queria retomar a soberania sobre imigração e política econômica. Caso não consiguisse, submeteria o país a um plebiscito para a saída da França da UE. 

Ao lado do governo Trump e do Brexit, a vitória da líder da Frente Nacional criaria um tripé conservador capaz de influenciar decisivamente o debate de temas globais relevantes, como os rumos do comércio entre os países, a segurança internacional, a questão migratória e a agenda climática e ambiental. A vitória de Macron e o êxito de seu partido no pleito legislativo representou um respiro liberal e democrático, e livrou a França do controverso receituário de sua adversária.

O que é o populismo?

Os partidos e políticos que expressam o sentimento antiglobalização são classificados pela mídia como “populistas”. Apesar de sua imprecisão, o uso do termo cresceu. A dificuldade do conceito é que ele serve para classificar grupos e indivíduos que têm posições muito diversas entre si, estando vinculados à esquerda ou à direita, além de atuarem em contextos diferentes.
São considerados populistas, por exemplo, tanto os partidos de extrema direita na Europa quanto os presidentes Donald Trump (EUA), Vladimir Putin (Rússia) ou Evo Morales (Bolívia).
Uma característica apontada no populismo é a hostilidade em relação às elites, ao mundo político oficial e às instituições estabelecidas. O populista vê a si próprio como se falasse para o homem comum esquecido e se imagina como a encarnação do genuíno nacionalismo. Adota a imagem do “povo”, muitas vezes definido em termos raciais ou religiosos, contra uma “elite” corrupta, seja do país, seja do exterior.
Em outro dado revelador das desigualdades, a Oxfam aponta que os oito homens mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio que 3,6 bilhões de pessoas, a metade mais pobre do planeta.
Essa disparidade é resultado de um sistema vantajoso para poucos eleitos em detrimento da maioria, que desencadeia um círculo vicioso: quem tem menos recursos vive em condições mais precárias de saúde, habitação e educação. Isso, por sua vez, resulta em menores oportunidades de conseguir trabalho com remuneração adequada.

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Resumo: Donald Trump e a crise da globalização

BREXIT E TRUMP Dois acontecimentos de 2016 questionam fundamentos da globalização e jogam o mundo numa situação de incertezas: o Brexit, nome pelo qual ficou conhecido o resultado do referendo que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), e a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos. Ambos expressam reações aos efeitos da crise econômica mundial e a medidas que causaram a redução na renda, o fechamento de indústrias e a elevação do desemprego.

GLOBALIZAÇÃO O termo globalização diz respeito à situação mundial contemporânea, em que o avanço da tecnologia integrou amplamente o mercado mundial, guiado economicamente pelas políticas neoliberais. Suas principais características são a abertura comercial e financeira, com a formação de blocos econômicos para promover o livre-comércio, a diminuição do papel do Estado na economia, a desregulamentação financeira e a flexibilização do mercado de trabalho.

CRISE NO LIVRE-COMÉRCIO A eleição de Trump está relacionada às faltas de perspectivas de ascensão social e de aumento da renda por parte da classe média norte-americana, principalmente após a crise de 2008. Os blocos econômicos e os acordos comerciais permitiram a transferência de indústrias para outros países em que a produção é mais barata, levando ao fechamento de milhões de postos de trabalho no setor. A automação e a redução nas tarifas alfandegárias também afetaram o mercado de trabalho.

NACIONALISMO A resposta de muitos governos à atual crise da globalização são políticas nacionalistas, baseadas na exploração do sentimento de identidade nacional para se posicionar na disputa global com outros países. Nesse contexto, partidos de extrema direita ganham força na Europa. A plataforma dessas agremiações privilegia a soberania sobre a economia e as fronteiras e um discurso anti-imigratório e, especialmente, em favor da retirada da União Europeia.

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