Por Esquinas – Beatriz Calais e Maria Laura Saraiva
“Não é nada sério, só um resfriadinho”. “A culpa é daquele povo lá”. “Relaxa que tem um remédio caseiro que cura tudo”. “Isolamento? Não precisa, isso é invenção política”. Frases que você já deve ter ouvido, com algumas variações, na atual pandemia do novo coronavírus. Mas que poderiam ser ouvidas, também com uma mudança aqui, outra ali, entre 1347 e 1351, durante o surto de peste negra. Ou cem anos atrás, com a eclosão da gripe espanhola.
Pandemias, como esses três exemplos, possuem mais semelhanças do que o fato de serem causadas por microorganismos infecciosos e levarem morte, crise e apreensão ao mundo em diferentes épocas. São também uma porta aberta para rumores, boatos e falácias, que se nutrem da matéria prima mais abundante nesses horas graves: o temor.
“O que acontece nesses momentos da história é o medo. No caso das pandemias, ativa-se uma certa memória coletiva do que já aconteceu antes”, explica Luiz Antonio Teixeira, pesquisador do Departamento de Pesquisas em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocriz). Segundo Teixeira, ainda que o contexto de cada época influencie a forma e o conteúdo das informações distorcidas em circulação, as formas como elas impactam a sociedade tendem a se repetir. São quatro características recorrentes em pandemias:
1- Culpabilização
Para o especialista da Fiocruz, a primeira reação diante de uma pandemia é tentar buscar respostas — e parece ser mais fácil lidar com uma situação difícil quando há um culpado.
“Ao longo da história, as pragas e todos os tipos de doença sempre foram associados a algum inimigo, como estrangeiros, judeus ou ‘bruxas’”, diz o pesquisador. Para ele, essa reação remonta à Idade Média, com a culpabilização sendo atribuída ao castigo divino.
Durante a peste negra, por exemplo, o boato de que os judeus eram responsáveis pela pandemia gerou perseguição de comunidades judaicas, fazendo com que muitas delas fossem massacradas. O rumor surgiu porque esse povo foi pouco atingido pela doença. A razão, porém, era bem concreta: por conta da Páscoa Judaica, os religiosos não podiam ter grãos em suas casas, o que reduzia o número de ratos — os transmissores da bactéria Yersinia pestis — nas residências.
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ricardo Augusto dos Santos concorda que “as epidemias sempre foram associadas aos ‘outros’”. Prova disso é o nome “gripe espanhola” — que teve como ponto zero não o país ibérico, mas os Estados Unidos. “Como os jornais espanhóis não censuraram o assunto, acabou virando a ‘gripe espanhola’”, explica Ricardo. Teixeira, por sua vez, completa com um paralelo com a época atual. “Não é de se estranhar que o coronavírus esteja sendo chamado por muitos de ‘vírus chinês’”, afirma.
2- Negação
É outro automatismo humano frente ao desconhecido. Sem controle sobre uma nova doença, homens e mulheres se veem impotentes. Terreno fértil para teorias que tentam desconstruir a seriedade das pandemias e suas medidas de prevenção.
A vacinação obrigatória buscava por fim à prevalência da varíola, em 1904, no Rio de Janeiro. A história é conhecida: deu em revolta, causada pela negação da gravidade dos sintomas e da eficácia da vacina. Hoje, o negacionismo, como se sabe, afeta sobretudo as medidas de isolamento social. “Quando se fala o coronavírus não existe, as pessoas vão para a rua, deixam de tomar os devidos cuidados”, alerta Lucy Vasconcelos, diretora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “Depois de anos e anos de estudos para criar vacinas e remédios, de repente alguém sem nunca ter estudado nada chega e diz: ‘eu não acredito’. E se essa pessoa deixa de se proteger, influencia os outros a fazerem isso também”, completa.
3- “Curas” milagrosas
O medo e a desinformação também desencadeiam um elemento bastante comum durante epidemias: as receitas caseiras para “curas milagrosas”. O receio de ser contaminado faz com que circulem antídotos que, em sua maioria, não possuem embasamento científico nem cumprem o que se propõem a fazer.
O historiador francês Jean Delumeau conta em seu livro A História do Medo no Ocidente que, na Idade Média, muitas pessoas chegarem a acreditar que a peste era causada pela infelicidade da população, e que o melhor jeito de evitar o mal seria com grandes festividades. Isso foi de fato incentivado por algumas autoridades da época, agravando o cenário da contaminação. Já para combater a gripe espanhola, o elixir da vez era feito com limão, mel e um pouco de álcool. Reconheceu? O Instituto Brasileiro da Cachaça atribui a criação da caipirinha justamente a esse período, embora o efeito não fosse o esperado.
“Aqui no Rio de Janeiro teve muito boato de remédios que salvariam da doença [covid-19], como canela, limão, caldo de galinha e a própria cloroquina. Existia a venda de alguns xaropes, tudo ligado ao enorme medo da morte”, conta Teixeira. O historiador ainda fala do perigo das crendices nesse momento: “O problema dos boatos é a suspensão das normas sociais. As pessoas tomam atitudes extremas, como ingestão de remédios e fórmulas. No início da pandemia de covid-19, ouvi relatos de pessoas tomando água muito quente, fervendo, para matar o vírus. É perigoso — e inócuo contra a doença”.
4- Desinformação
Santos se preocupa com a repetição de certos comportamentos durante epidemias. “Me causa certa angústia, porque fico esperando acontecer outras condutas irracionais”. A abundância de notícias poderia ser um antídoto. Mas não tem sido assim. Brasil, 2017: o sarampo, doença que já havia sido considerada erradicada, ressurge, na esteira de movimentos antivacina que negam a eficácia comprovada da imunização.
Em sua percepção, a pandemia de coronavírus está distante do drama da gripe espanhola. “No início da gripe espanhola, a desinformação foi total. O isolamento começou a ser obrigatório porque as pessoas estavam muito doentes, de cama”, diz. Vasconcelos acrescenta, ainda, o papel fundamental da ciência para além dos laboratórios — entrando, também, na esfera pública com informação confiável. “Nosso papel como médicos, infectologistas e pesquisadores é informar o cidadão, é nossa obrigação. As pessoas precisam entender que não é algo passível de ser politizado. É verdade ou não é verdade. Ponto”.
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