Machado de Assis amava os animais – e este livro é a prova disso
Coletânea recupera contos e crônicas em que o autor dá voz aos bichos para refletir sobre a condição humana

Mesmo mais de um século após sua morte, Machado de Assis continua provocando leitores – e, agora, também surpreendendo. A recém-lançada coletânea “Na Arca: Machado de Assis e os Animais“, organizada por Fabiane Secches e Maria Esther Maciel e publicada pela editora Fósforo, revela um lado menos conhecido do autor: sua sensível, crítica e às vezes até filosófica atenção aos animais.
O volume reúne 24 textos do escritor, entre contos, crônicas, cartas e trechos diversos, escritos ao longo de quase quarenta anos. A seleção busca destacar como cães, gatos, burros, canários e outros bichos não aparecem como figurantes ou metáforas óbvias, como ocorre em muitas fábulas, mas como sujeitos ativos, com pensamentos, sentimentos e perspectivas próprias. É uma leitura que mostra um outro lado de Machado, evidenciando sua originalidade também no modo como olhava para as relações entre humanos e não humanos.
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Animais e críticas
Nos textos reunidos, os animais não estão ali para ensinar uma lição moral. Ao contrário: são figuras que observam, questionam e criticam a lógica humana. Em “Ideias de canário”, por exemplo, um pássaro reflete sobre o olhar antropocêntrico que os homens lançam sobre a natureza.
Já em “Conversa de burros”, uma dupla de asnos, designada para puxar um bonde, filosofa sobre o avanço dos bondes elétricos e a condição de servidão imposta pelos humanos. Em outro momento, Machado ainda escreve em primeira pessoa na pele de um gato e faz isso com tanta empatia e humor que torna difícil não imaginar o autor, de fato, se vendo como um “gatinho preto”, apelido que chegou a usar em correspondências pessoais.
A escolha por dar voz aos animais não é apenas um recurso de estilo. É um gesto político e filosófico, que antecipa debates contemporâneos sobre os direitos dos animais e a necessidade de se repensar a ideia de humanidade. Como destaca Maria Esther Maciel no posfácio do livro, há em Machado uma sensibilidade que o coloca como um precursor de autores preocupados com a ética nas relações entre espécies.
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Uma leitura atual, mesmo escrita no século 19
Os textos selecionados foram produzidos em um período de grandes transformações: a consolidação da ciência moderna, a popularização do darwinismo, o avanço industrial. E Machado, atento observador, incorporou tudo isso em sua obra, questionando as certezas do racionalismo e os limites da ciência quando voltada contra os mais frágeis, sejam eles humanos ou não.
Ele criticava vivissecções (prática de dissecar animais vivos) feitas em nome da ciência, ironizava hábitos alimentares carnívoros e demonstrava simpatia por sociedades protetoras de animais. Em uma crônica, chega a escrever: “Não importa, o homem é carnívoro. Deus, ao contrário, é vegetariano.”
Essa posição não é panfletária, mas irônica, ambígua, como é típico de seu estilo. O humor que atravessa os textos não anula sua crítica, ao contrário, a torna mais afiada. O leitor é levado a rir, mas também a pensar.
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Machado além do que se espera
Para o vestibulando acostumado a ver Machado como o autor de narradores céticos, amores ambíguos e jogos de memória, “Na Arca” é uma oportunidade de conhecer uma faceta igualmente sofisticada, mas menos explorada. Ao colocar os animais no centro de suas narrativas, ele amplia o alcance de sua crítica social e filosófica.
Assim, a coletânea pode render um repertório valioso para redações e questões discursivas que toquem em temas como ética, ciência, meio ambiente, direitos dos animais e representações literárias da natureza. Além disso, é uma leitura prazerosa, bem editada, com projeto gráfico de Flávia Castanheira e ilustrações de Gê Viana, que contribuem para aproximar o leitor de um Machado mais acessível, mas não menos complexo.
A obra revela uma versão engajada, irônica e profundamente atenta às formas de vida ao seu redor, inclusive aquelas que, durante muito tempo, foram excluídas do debate literário.
Mais do que um lançamento, trata-se de uma oportunidade de renovar o olhar sobre um autor clássico e, quem sabe, de se encantar por ele de um jeito novo.
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