Quem foi Joaquim Nabuco, abolicionista que defendia a monarquia
Ele foi amigo de Machado de Assis e convenceu um papa a apoiar o abolicionismo. Conheça a história de um dos maiores intelectuais e políticos brasileiros
Joaquim Nabuco ainda era um menino quando um acontecimento transformou para sempre sua visão a respeito da escravidão. Sentado nas escadarias exteriores da casa da madrinha, senhora do Engenho Massangana em Recife (PE), ele viu correr em sua direção e se atirar aos seus pés um jovem negro, de cerca de dezoito anos, que fazia uma súplica desesperada. Ele pedia ao menino que convencesse a madrinha a comprá-lo de um vizinho, um senhor de escravo que o castigava muito. Havia fugido e agora corria risco de vida. A escravidão toda, descreveu Nabuco mais tarde no livro “Minhas Memórias“, cabia naquele quadro da sua infância.
Foram os primeiros oito anos de vida no Engenho Massangana, criado pela madrinha, que constituíram a “formação humana” daquele que se tornaria um dos principais nomes do abolicionismo no Brasil. Mas ao contrário do que se pode imaginar, as memórias que Nabuco guardou do período não foram todas tão assombrosas quanto a do jovem que implorou para ser comprado. A escravidão, por um bom tempo, lhe parecia quase cordial: em seus relatos, ele lembra a generosidade da madrinha com seus escravizados, da relação de “afeto” que cultivavam entre si.
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Mais tarde, percebeu que a “gratidão” que os escravizados tinham pela senhora não era exatamente positiva, mas um reflexo do quão rígidas eram as relações de poder. Mais do que isso, um sinal de que sabiam que a escravidão poderia ser infinitamente mais cruel do que era no Engenho Massangana.
Na apresentação do livro “Massangana e Nabuco“, Fernando Lyra, ex-ministro da Justiça e ex-presidente da Fundação Joaquim Nabuco, lembra que a fazendo era uma amostra do Brasil em suas contradições.
De um lado, a suave madrinha, dona Ana Rosa, os escravos, a senzala, o grande pombal negro, as casas de barro. Mas no entorno da propriedade se erguiam os engenhos de onde se ouviam os gritos dos escravos supliciados. O chispar do chicote. As cantigas de lamentação. De um daqueles engenhos, fugira o jovem negro que se jogou aos pés do menino Nabuco, conduzindo-o à descoberta precoce do mal do cativeiro.
As contradições que marcaram a infância de Joaquim Nabuco o acompanharam por toda a vida. O abolicionista herdeiro de uma família escravocrata, o defensor da igualdade que era um convicto monarquista. De certa forma, a vida do escritor, político, diplomata e intelectual também refletia as contrariedades do próprio país.
Um abolicionista nasce em berço escravocrata
Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu no dia 19 de agosto de 1849 em Recife, capital de Pernambuco, carregando o peso da tradição de ambos os lados da família. José Tomáz Nabuco de Araújo, seu pai, era jurista e nascido em uma família de tradição política na Bahia, com diversos senadores do Império – ele mesmo, mais tarde, se tornaria um. A mãe, Ana Benigna de Sá Barreto, vinha de uma família portuguesa que há muito tempo exercia influência em Pernambuco.
No mesmo dia em que Joaquim Nabuco foi batizado, poucos meses depois, os pais o entregaram aos cuidados dos padrinhos e senhores de engenho, Joaquim Aurélio Pereira de Carvalho e d. Ana Rosa Falcão de Carvalho, e partiram para a Corte no Rio de Janeiro, já que José Tomáz assumiria um assento na Câmara. Foi desta forma que Nabuco passou os primeiros anos da infância no Engenho Massangana.
Só em 1857, com a morte da madrinha, o menino foi enviado para o Rio de Janeiro para viver com os pais – e o convívio próximo com o universo da política, além da literatura, acabaram de formar seu espírito abolicionista. Na faculdade de Direito de São Paulo conviveu com grandes figuras que lutavam pelo fim da escravidão, como o poeta Castro Alves e o “patriarca da Independência” José Bonifácio. Mais tarde, transferiu-se para a Faculdade de Direito do Recife.
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Foi nesta época, já por volta de 1870, que Nabuco começou a lutar “corpo-a-corpo com a escravidão”, em suas próprias palavras. Com seus recém-completados 20 anos, o jovem escreveu o livro “A escravidão“, no qual condenava moralmente o regime, falava da degradação que ele causava na sociedade e na família e chegava até mesmo a condená-la do ponto de vista cristão – mas não publicou a obra.
Um outro evento, no entanto, o projetou como abolicionista e chocou a sociedade pernambucana. Naquele mesmo ano, Nabuco ofereceu-se para advogar em defesa de um escravizado negro, Tomás, que havia assassinado o próprio senhor depois de ser açoitado em praça pública. Depois de capturado, também matou um guarda para fugir da prisão.
Na famosa defesa, que também entrou para a história do Direito, Nabuco alegou que os dois assassinatos foram motivados por crimes sociais dos quais o homem havia sido vítima: a escravidão e a pena de morte. Defendeu que Tomás fora educado como um homem livre e por isso não suportou a humilhação do açoitamento em público e gerou burburinho no tribunal quando afirmou: “não cometeu um crime, removeu um obstáculo!”, em referência ao assassinato do guarda.
Conseguiu demover o júri da pena de morte, mas Tomás acabou condenado a galés perpétua – uma punição da época que previa prisão e serviços forçados.
O homem público e o pensador
“Você nos dá juntos o homem público e o pensador”. A frase pode parecer uma conclusão óbvia a respeito de Joaquim Nabuco quando sua biografia é recordada nos dias de hoje, mais de cem anos após sua morte. Mas por ter sido escrita em 1906 por ninguém menos que Machado de Assis, torna-se um elogio sem tamanho.
“Esta obra, não feita agora mas agora publicada, vem mostrar que em meio dos graves trabalhos que o Estado lhe confiou, não repudia as faculdades de artista que primeiro exerceu e tão brilhantemente lhe criaram a carreira literária”, completou Machado em carta enviada à Nabuco em agosto daquele ano. A obra a que o célebre escritor brasileiro se refere é “Pensées détachées et souvenirs”, escrita primeiro em francês pelo pernambucano e muito mais tarde traduzida para o português como “Pensamentos soltos: Camões e assuntos americanos”.
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As “faculdades de artista” e a carreira literária de Nabuco foram ainda mais precoces do que sua atividade política ou luta pelo abolicionismo. Foi ainda na adolescência que ele começou a ensaiar as primeiras poesias e tornou-se amigo próximo de Machado de Assis. Escreveu “A Escravidão” logo que retornou a Recife, mas sua primeira obra publicada foi “Camões e os Lusíadas”.
Ao longo da vida, publicou diversas obras em francês, em especial as literárias – como ” L’Amour est Dieu” e “L´Option”. Suas obras mais recordadas, no entanto, foram escritas mais tarde e tinham como temática central a causa abolicionista e a política: “O Abolicionista“, “O erro do Imperador”, “O Eclipse do Abolicionismo”, “Estadista do Império”. “Minha Formação“, livro de memórias, também é frequentemente recordado.
Em 1897, Joaquim Nabuco participou, ao lado de Machado de Assis, da fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Monarquista convicto
A atuação de Nabuco como homem público foi tão relevante quanto sua contribuição literária. Ao longo da vida, foi eleito deputado inúmeras vezes, e defendeu leis pela abolição da escravidão. Também apresentou um projeto de lei de sua autoria condenando a exploração do Xingu e defendendo os direitos dos indígenas. No exterior, viveu experiências únicas que mostraram o tamanho de sua influência: chegou a convencer o papa Leão XIII, em uma audiência particular, a elaborar uma encíclica contra a escravidão. Mais tarde, ocupou cargos na diplomacia e morou em Washington.
Nada parecia demover Joaquim Nabuco da vida política. Até 1889. A proclamação da República no Brasil foi um duro golpe para o homem à frente de seu tempo que, curiosamente, era também monarquista. Joaquim Nabuco publicou no ano seguinte ao golpe que instaurou a república um manifesto, nomeado “Porque Continuo Monarquista“, e pouco depois se mudou com a família para a Inglaterra.
Neste manifesto e em outros escritos que viria a publicar sobre o tema, Nabuco buscava evidenciar as contradições da República. Em determinado trecho do texto ele rebate, por exemplo, a proposta de sufrágio – direito ao voto – estendido aos que sabiam ler e escrever, já que o país era majoritariamente analfabeto.
No artigo “O Império é que era a República: a monarquia republicana de Joaquim Nabuco” o doutor em ciência política Christian Edward Cyril Lynch, tenta explicar a insistente fidelidade do abolicionista à monarquia. Para ele, Nabuco acreditava que a república aos moldes oligárquicos da época mais atrapalharia do que ajudaria no advento de uma sociedade autenticamente republicana, liberal e democrática. Era, portanto, apenas um rótulo. “A grande questão para a democracia brasileira não é a monarquia é a escravidão”, trazia o lema de uma de suas campanhas.
Joaquim Nabuco começou a aproximar-se da República apenas em meados de 1898, e voltou a aceitar um cargo como funcionário público em 1900. Foi nomeado embaixador em Washington no ano de 1905 e mudou-se para os Estados Unidos. Faleceu no país em 1910, aos 60 anos, vítima de uma doença congênita.
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