Enem: alunos nota mil na redação dão dicas de repertório
No lugar de decorar frases coringas ou fórmulas prontas, eles preferiram ler teóricos contemporâneos e acompanhar o noticiário
Garantir uma nota 1000 na redação do Enem não é uma tarefa fácil. Anualmente, o número de candidatos que consegue alcançar tal façanha nunca passa das poucas dezenas – em 2021, por exemplo, foram somente vinte e dois. Fato é que o exame é conhecido por ser meticuloso na correção da dissertação e, para garantir a nota máxima, é preciso “gabaritar” as cinco competências que são avaliadas. Entre as habilidades analisadas pelos corretores está uma das mais temidas pelos candidatos: o repertório.
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Carina Moura, de 18 anos, e Luís Felipe Alves Paiva de Brito, de 24, fazem parte do grupo de estudantes que conseguiram tirar a nota máxima na redação do último Enem, cujo tema foi “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil“. Além da nota em comum, os dois possuem uma semelhança quando o assunto é repertório: ambos não decoraram citação ou usaram fórmulas prontas em seus textos. O segredo para conseguir fazer uma redação exemplar? Fugir do senso comum!
O GUIA DO ESTUDANTE conversou com os dois candidatos e separou as principais dicas de repertório que eles aplicaram em seus textos. Confira abaixo o que cada um disse.
Jornalismo como repertório
Luís Felipe é natural de Pelotas (RS), mas mora há mais de dez anos em Maceió, capital de Alagoas. Para o estudante, o Enem, os vestibulares e a própria vida universitária não são novidades. Luís já é formado em Engenharia de Petróleo pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). No entanto, logo após a conclusão do curso, em meio à pandemia de 2020, o recém-formado percebeu que seu chamado era outro: longe das refinarias e dentro de um hospital.
Com o objetivo de cursar Medicina, Luís tem prestado o Enem todos os anos desde então. Em 2020, tirou 980 na redação; em 2021, 960. E em 2022, na terceira tentativa, o 1000 finalmente veio. Para ele, houve um fator decisivo que garantiu a nota máxima em 2022. “O que eu fiz de diferente durante o último ano, além de tentar fazer no mínimo uma redação por semana, foi reescrever meus textos logo depois que elas eram corrigidas”, diz. O estudante fez o cursinho online Descomplica nos primeiros dois anos de estudo e o presencial Contato, em Maceió, no terceiro.
Ao reescrever os textos que recebia avaliados pelos corretores, buscava lapidá-los até que não houvesse mais falhas. No processo, foi eliminando vícios de linguagem e, de quebra, criando seu próprio modelo de redação. “Chegou um momento, no meio do ano letivo, que eu passei a conseguir mandar um texto para a correção e eles retornarem falando ‘beleza, este aqui realmente está sem erros’.”
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Ao abrir a prova do Enem 2023, Luís Felipe admite que não se surpreendeu com o tema – já havia escrito sobre tópicos semelhantes ao longo do ano. Ainda assim, as escolhas que fez como repertório podem surpreender alguns candidatos e professores mais tradicionais: Luís não citou nenhum filósofo ou teórico. Como repertório, o jovem trouxe notícias jornalísticas.
“Quando li o tema eu lembrei de algo que eu vi no jornal, que foi quando o ministro do Supremo Tribunal Federal defendeu que o direito dos indígenas à terra era algo inato e anterior à formação do Estado do Brasil. Eu lembrei dessa fala porque ela me impactou bastante na época. Eu não lembrava exatamente em qual jornal eu havia lido a matéria, mas escrevi algo como ‘de acordo com o ministro do Supremo Tribunal Federal…’ e desenvolvi isso como um argumento.”
No segundo parágrafo de desenvolvimento, Luís Felipe citou outro evento que havia visto no noticiário. Ao falar dos impactos que as atividade ilegais causam na vida dos povos tradicionais, abordou a questão do garimpo ilegal que polui os rios com mercúrio e prejudica os pescadores e ribeirinhos. A exceção foi a introdução, em que preferiu citar um poema de Oswald de Andrade (conteúdo que havia estudando com afinco por conta do centenário da Semana de Arte de 1922).
O aluno conta que, durante o seu terceiro ano de estudos para o Enem, preferiu se dedicar menos a aprender repertório de filósofos e sociólogos e fica mais atento ao que acontecia no Brasil e no mundo. Ler portais de notícias e assistir telejornais passou a fazer parte da sua rotina. “Se você pensar, o que o Enem pede do aluno é conhecimento de mundo, e esse repertório pode ser tanto acadêmico quanto de atualidades, de notícias”, diz.
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Como forma de estratégia, o jovem passou a fazer um exercício mental toda vez que lia uma notícia de cunho social: problematizava e pensava em duas teses e uma solução. Desta forma, treinava, em poucos minutos, o seu poder de argumentação para os parágrafos de desenvolvimento e a conclusão para a proposta de intervenção. “Ao fazer isso, você já se acostuma a pensar em duas teses e uma proposta de intervenção ao ver qualquer tema”, conclui.
Dica da estudante: a partir da reescrita e da busca de entender o que errou, crie o seu próprio modelo de redação. Acompanhe o noticiário e faça um exercício mental de imaginar como poderia desenvolver duas teses e uma proposta de intervenção para aquele tema.
Em busca do Brasil real
Filha de pai comerciante e mãe cabeleireira, Carina, que nasceu em Caruaru, interior de Pernambuco, sempre se dedicou aos estudos. Seu sonho desde pequena era cursar Medicina – algo que agora, graças à sua nota máxima na redação, está mais próximo de alcançar. No Ensino Médio, a jovem se mudou para a cidade de Limoeiro, onde foi morar em uma pensão e estudar em um colégio particular. A partir do terceiro ano, assinou o curso online de redação da professora Fernanda Pessoa, de Recife, que teve três alunas nota mil no Enem 2021.
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Para a estudante, manter um ritmo de estudos saudável e unir as aulas online do curso com a monitoria presencial do colégio foi essencial para a sua jornada até o sonhado mil. “Tem gente que começa fazendo cinco redações por semana, aí depois cansa e fica três meses sem escrever nada. Eu fazia de uma a duas por semana, no máximo. E também não assistia as aulas do cursinho todos os dias, até porque o conteúdo era denso e a rotina do terceiro ano já era bem pesada por si só”, conta.
A matrícula no curso de Fernanda Pessoa foi o primeiro contato que a jovem teve com um curso de redação. Uma das suas primeiras posturas após iniciar as aulas foi abandonar a ideia de decorar uma fórmula de texto pronta. Ao invés disso, procurou fugir do senso comum e das famosas citações coringas, passando a estudar, como ela mesmo classifica, um “repertório de alto nível”. Focou em teóricos contemporâneos, como Boaventura de Sousa Santos e Lilia Schwarcz.
“Muita gente fala em usar um modelo de redação parar tirar uma nota alta. Às vezes funciona, às vezes não. Eu particularmente não gosto. Acho que nós temos que conhecer o Brasil real e seus problemas reais para então escrever a redação. Os temas que caem são sempre problemas do cotidiano.”
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Em seu texto no Enem 2023, Carina citou três grandes repertórios. Na introdução, inicia a dissertação falando sobre como na literatura do romantismo a idealizações das culturas indígenas não era condizente com a realidade, uma vez que esses povos continuavam a ser explorados e torturados. No primeiro parágrafo de desenvolvimento, citou o conceito de colonialismo insidioso de Boaventura de Sousa Santos, fazendo uma analogia com a forma com que os povos originários são tratados pelas políticas públicas.
Por fim, no segundo parágrafo de desenvolvimento, abordou a ideia de epistemicídio brasileiro, da filósofa Sueli Carneiro, que afirma que somente algumas formas de saber são legitimadas, enquanto outras são inferiorizadas ou invisibilizadas.
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A jovem, no entanto, alerta: acumular repertório não é algo que se faz do dia para a noite. Ao longo do ano, Carina mergulhou nas aulas de atualidades e buscou aumentar a sua carga de leitura teórica. “É um processo. Você não vai aprender tudo de uma vez, você vai absorvendo conforme vai vendo as aulas e aprendendo a usar na redação”, conclui.
Dica da estudante: comece aprendendo as estruturas do texto e as competências avaliadas pela banca. Inicie com repertórios mais básicos e vá avançando conforme estuda. Se atente às leituras, busque aprender com teóricos contemporâneos e saia do senso comum.