O que é a reforma agrária, reivindicada pelo MST
O movimento, há décadas no centro desta disputa, é investigado em uma CPI da Câmara. Entenda o histórico da questão agrária no Brasil
Nas redes sociais, vídeos mostram cenas de tumulto e bate-boca na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), instalada em maio deste ano. Ou melhor, a nova CPI do MST. Articulada pelos parlamentares de oposição na Câmara dos Deputados, esta é a quinta comissão que tem como alvo o MST e apenas mais um episódio da história de embates que envolvem o nome do movimento em seus quase 40 anos de existência. Desta vez, o requerimento da CPI justifica que a comissão foi criada para “investigar a atuação do grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do seu real propósito, assim como de seus financiadores”.
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Desde 1984, o MST chama a atenção para a distribuição desigual de terras no Brasil, defendendo a reforma agrária. O grupo reivindica ainda outras pautas como a soberania alimentar e, mais recentemente, a produção agroecológica e o desenvolvimento sustentável. Ao longo dos anos, o movimento contribuiu para o avanço das políticas públicas destinadas ao meio rural, mas também esteve no centro de grandes disputas com produtores rurais e representantes do agronegócio, que o acusa de violência e de invadir terras.
A CPI acirra ainda mais os discursos que procuram tanto criminalizar quanto legitimar as ações do MST, e lança luz, mais uma vez, sobre a reforma agrária.
Mas afinal, o que significa essa reforma? Como a pauta foi compreendida pela política brasileira ao longo da história? E por que precisamos falar sobre ela? O GUIA DO ESTUDANTE explica.
Concentração fundiária, um problema secular
O sistema fundiário brasileiro guarda, até hoje, resquícios da política de ocupação colonial do território e da má distribuição de terras às famílias do país.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, fatiaram a terra em grandes pedaços e deram seu direito de uso a algumas poucas pessoas, nas chamadas Sesmarias. Essas pessoas, muitas vezes com dinheiro e influência junto à coroa, eram responsáveis por garantir a produtividade da terra, estimular o comércio português e facilitar a gestão do território – usando para isso a mão de obra de pequenos posseiros e pessoas escravizadas, além de expulsar povos indígenas que já viviam ali.
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Mais tarde, em 1850, a Lei de Terras regularizou os títulos de grandes proprietários e determinou a compra como o único meio de se ter a posse de uma terra no Brasil. Na prática, isso as tornava inacessíveis aos ex-escravizados e imigrantes europeus pobres.
O resultado foi uma enorme concentração fundiária, ou seja, a existência de muitos pedaços – ou áreas muito grandes – de terra nas mãos de poucos donos. No Censo Agropecuário de 2017, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrou que 1% das propriedades rurais têm mais de 1.000 hectares e ocupam, juntas, 47,6% de toda a área rural brasileira. Já os 50% com estabelecimentos menores, com até 10 hectares, ocupam somente 2,3% do território agrícola.
Acontece que a terra não pode ser vista como outras mercadorias, sujeita a um direito absoluto de propriedade, explica Paulo Eduardo Moruzzi Marques, professor da Esalq/USP (Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz da Universidade de São Paulo).
“É um recurso indispensável para a preservação de elementos centrais dos quais depende toda a vida em nosso planeta: biodiversidade, qualidade da água, produção alimentar”, diz o pesquisador, que atua nas áreas de Ecologia Aplicada, ambiente e sociedade. “Em princípio, [as políticas fundiárias] devem orientar o acesso ao solo para assegurar produção alimentar, moradia e proteção ambiental, estando no primeiro plano das estratégias de desenvolvimento sustentável”.
Essa é uma das razões pelas quais uma parcela da sociedade reivindica, há muitas décadas, que ocorra uma reforma agrária no país. Além de garantir proteção ao meio ambiente e assegurar a produção de alimentos, ela repararia a distribuição desigual de terras que começou com a colonização e se mantém nos dias de hoje, desapropriando terras que não estejam sendo utilizadas para distribuir entre famílias rurais sem posses.
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Na lei e na prática: a disputa pela reforma agrária no Brasil
Desde 1988, o Estado brasileiro assume abertamente na Constituição Federal a responsabilidade por desapropriar, para fins de reforma agrária, imóveis rurais que não estejam cumprindo com sua função social. Isto é, devem ser colocadas à disposição da reforma agrária as terras que não seguem três requisitos básicos: um nível mínimo de produtividade, o respeito à legislação ambiental e a observância às leis trabalhistas e do bem-estar social.
“A dificuldade é conseguir que a justiça reconheça que o imóvel não está cumprindo a função social. Normalmente, a lei é interpretada como tendo que cumprir um dos requisitos exigidos, quando na verdade ela fala em cumprimento simultâneo de todas as exigências”, comenta Alysson Oliveira Cabral, professor no Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Mas as discussões sobre a reforma agrária no Brasil são bem anteriores à Constituição Cidadã.
Elas começam a ganhar fôlego especialmente na década de 1950, quando a organização dos trabalhadores rurais nas Ligas Camponesas acentuou as reivindicações por melhores condições de vida no campo, além de mudanças na estrutura fundiária. As Ligas Camponesas foram organizações influenciadas pelo então Partido Comunista do Brasil (PCB) e que se espalharam por todo o país. Ao mesmo tempo, a preocupação de que os movimentos sociais campesinos poderiam ameaçar a hegemonia capitalista na América Latina impulsionou o apoio norte-americano à reforma agrária na região.
Essa efervescência social e política continua intensa até o início dos anos 1960 e é fortalecida pela aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia os direitos trabalhistas aos camponeses, e pelas propostas de Reforma de Base do governo João Goulart.
Na época, o discurso era de que, além de garantir os direitos sociais das famílias rurais, a reforma também teria impacto positivo na economia. “O aumento da produção agrícola, pela concorrência entre os produtores, reduziria os custos de produção industrial e permitiria a melhor distribuição de renda no campo, ampliando o mercado consumidor da indústria”, resume Alysson.
O objetivo de Jango era indenizar a longo prazo os grandes proprietários pelas desapropriações de terra, em títulos de dívida pública. Mas a medida não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Em 1964, o presidente foi deposto pelo Golpe Civil-Militar de 1964.
Ainda assim, o primeiro governo militar homologou o Estatuto da Terra, que oferecia instrumentos para a implantação da reforma agrária. O problema é que o documento acabou virando letra morta – ou seja, suas ideias nunca saíram do papel. “Tanto que a elaboração do Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, prevista no Estatuto da Terra, apenas ocorreu em 1985, com o fim da ditadura militar”, diz Paulo Eduardo Moruzzi Marques, da Esalq/USP.
No período de redemocratização, mais favorável aos temas sociais, a questão fundiária volta à pauta tanto com o surgimento do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, quanto nas promessas da Aliança Democrática liderada por Tancredo Neves e José Sarney. Nessa época, a reforma agrária era vista como solução para o êxodo rural e para problemas urbanos a ele associados, como a fome, a miséria e a violência.
Outro momento-chave é o Massacre de Eldorado dos Carajás (PA), em 1996, com o assassinato de 21 trabalhadores rurais sem-terra. Segundo Paulo Eduardo, a indignação pública e a pressão política, nacional e internacionalmente, provocaram uma reação do governo de Fernando Henrique Cardoso, até então omisso em relação ao tema.
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Assim, é criado o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, que se torna depois o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “São propostas muitas inovações de políticas agroalimentares, associadas especialmente com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), reinstalado em 2003. Diante da pressão dos movimentos sociais, muitos assentamentos foram implantados neste período”, diz o docente.
Atualmente, quando uma área é identificada como improdutiva, os movimentos de luta pela terra a reinvindicam ao Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que faz um estudo e recomenda, ou não, sua desapropriação. Na sequência, cabe ao governo elaborar um projeto de assentamento para contemplar as famílias cadastradas e dotá-lo da infraestrutura básica para que elas possam produzir.
“A dificuldade é a demora entre a identificação da área, os trâmites burocráticos e a decisão política do governo em desapropriar a área. A quantidade de áreas desapropriadas é insuficiente para atender aos interessados”, comenta Alysson, da UFPB. “O processo só avança quando ocorre algum conflito que tem repercussão e os sem-terra ganham apoio da sociedade”.
Por que reformar?
Mas afinal, o que poderia mudar no Brasil com uma reforma agrária? Os defensores da política listam motivos que vão da ordem política à econômica, passando ainda pelas questões alimentar e ambiental.
Primeiro: a democratização do acesso à terra e a resolução de conflitos no campo. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, o Brasil registrou um caso de violência no campo a cada quatro horas em 2022, o segundo maior número da década. Povos indígenas e pessoas sem-terra estão entre as principais vítimas.
“Os principais conflitos costumam ocorrer em áreas em disputa, em que o proprietário legal (ou grileiro) tenta expulsar famílias que vivem nessas terras há muitos anos, algumas há várias gerações. Nas áreas em que não há disputa, o problema mais comum é o desrespeito à legislação trabalhista”, diz Alysson.
A segunda razão seria o fortalecimento da agricultura familiar e combate à insegurança alimentar. “Este ano, o Brasil baterá recorde na produção de soja, mas deverá importar feijão porque a produção nacional não será suficiente para atender à população”, continua o docente. “A reforma agrária possibilitaria uma maior produção de alimentos consumidos pela nossa população e, ao mesmo tempo, permitiria melhorar a renda das famílias da agricultura familiar”.
Outros ganhos incluem a redução dos preços de produtos agrícolas, devido a uma maior competição entre os produtores; a diminuição do poder político das oligarquias rurais em prol dos pequenos agricultores e a preservação da diversidade cultural e do modo de vida das populações tradicionais – que, inclusive, foi tema de redação no Enem 2022.
Para que todas essas medidas saíssem do papel, muito pouco precisaria ser feito em termos de legislação. O principal desafio seria o convencimento da população acerca dos benefícios da produção agrícola de pequenas propriedades, em comparação com o modelo latifundiário.
Os últimos oito anos, complementa Paulo Eduardo Moruzzi, foram de retrocesso nas políticas agrárias, com, por exemplo, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Ambos foram reconstituídos recentemente.
“[Isso] representa uma oportunidade das mais significativas para uma reorientação das políticas públicas em favor da reforma agrária”, finaliza.
Consulta
CABRAL, Alysson André Oliveira (2021). Reforma Agrária no Brasil: A Reforma (Im)possível. Tese de Doutorado – Universidade Federal da Paraíba, 19-29; 63-87.
BORSATTO, Ricardo Serra, & CARMO, Maristela Simões (2013). A construção do discurso agroecológico no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Revista de Economia e Sociologia Rural, 51(4), 645-660.
ANTIER, Clémentine & MORUZZI MARQUES, Paulo Eduardo (2011). Concepções e modelos agrários em concorrência na gestão fundiária na França: questões oportunas para refletir sobre o caso brasileiro. Revista de Políticas Públicas, 15(1), p. 13-20.
MORUZZI MARQUES, Paulo Eduardo (2022). Referências emergentes de sustentabilidade para a ação pública agroalimentar: um estudo do Programa de Aquisição de Alimentos no estado de São Paulo. In: CAMARGO, Regina; BORSATTO, Ricardo; SOUZA-ESQUERDO, Vanilda (Org.). Agricultura familiar e políticas públicas no estado de São Paulo. São Carlos: EDUFSCar, p. 321-342.
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