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Preconceito amarelo: o que é e por que aumenta durante os vestibulares

Comentários como "Para entrar na USP, tem que matar um japonês” são comuns na época de provas e escancara uma ferida não curada da sociedade brasileira

Por Luccas Diaz
Atualizado em 8 mar 2021, 19h30 - Publicado em 29 jan 2021, 10h13
Jovem estudando com livros e computador
 (Getty Images/Reprodução)
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Entre outros temas de relevância atual, a temporada “Viva a Diferença” (2017) da novela Malhação abordou uma questão presente, mas não tão discutida como deveria. Em certa altura da trama, os personagens, assim como boa parte dos jovens do país, se preparam para prestar o vestibular. Entre um desabafo e outro, a personagem Tina, interpretada pela atriz Ana Hikari, diz que a sofreu a vida toda com piadinhas relacionando sua ascendência asiática com uma suposta inteligência acima da média. E que em tempos de vestibular esse tipo de comentário só aumentava.

Infelizmente, não é apenas na ficção que esse tipo de coisa acontece. Frases como “Para entrar na USP, tem que matar um japonês”, “Se tem um japa na sala, já pode desistir da vaga” ou ainda “Claro que ele passou, só tem olho puxado nos cursos de exatas” eram comuns até poucos anos atrás. Isso sem falar nos termos pejorativos como “xing ling” e “japinha” para designar qualquer descendente asiático. O que tanto Tina da Malhação, como milhares de jovens no Brasil, passam todo ano é chamado de preconceito amarelo.

Ana Hikari
A atriz Ana Hikari interpreta a personagem Tina na novela Malhação e na série spin-off As Five. A jovem acredita que seu papel contribuiu com a representatividade asiática na TV (Instagram/Reprodução)

O que é preconceito amarelo?

De acordo com o Dicionário Digital Aulete, preconceito é uma “atitude genérica de discriminação ou rejeição de pessoas, grupos, ideias etc., em relação a sexo, raça, nacionalidade, religião etc.

No caso do preconceito amarelo, estamos falando exclusivamente de julgamentos pré-concebidos que podem envolver tanto atos de agressões físicas quanto mentais com indivíduos amarelos – isto é, pessoas nascidas ou com ascendência de países asiáticos.

As raízes asiáticas no Brasil não são poucas. No país, vive a maior colônia de japoneses fora do Japão. A imigração japonesa por aqui teve início, oficialmente, no ano de 1908, com o navio japonês Kasato Maru desembarcando no porto de Santos (SP).

Foram mais de 50 dias de viagem que trouxeram cerca de 165 famílias para trabalhar nos cafezais de São Paulo. O navio marca o início de um fluxo de imigração contínuo, que criou uma das relações mais marcantes do país. As trocas culturais entre Japão e Brasil podem ser vistas com facilidade entre as cidades brasileiras, com festas e festivais sendo celebrados em bairros como o da Liberdade, em São Paulo.

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Família Japonesa no Brasil em 1930
Família de imigrantes japoneses em Bastos, São Paulo, 1930. A imigração japonesa teve um grande fluxo entre o fim do século 19 e o início do 20. (Wikimedia Commons/Reprodução)

Mais de um século separa o Kasato Maru dos dias de hoje e outros fluxos de imigração de países asiáticos definiram o próprio DNA da sociedade brasileira. Essa troca de costumes parece também ser sentida “do outro lado”, com os brasileiros representando a maior comunidade não-asiática dentro do Japão. Com uma relação aparentemente tão amigável, antiga e incorporada na sociedade, por que ainda se presencia a discriminação contra asiáticos no Brasil?

Preconceito ou racismo?

Um ponto que merece destaque, porém, é reconhecer a diferença entre um ato de preconceito e um ato de racismo. Fato é que muitas vezes esses dois fatores andam de mãos dadas, mas é importante distinguir as diferentes lutas. Quando se fala em racismo, se fala de uma linha de pensamento que pressupõe que há uma raça superior e outra inferior. Para entender melhor, pode-se utilizar o caso do racismo contra pretos; o ato racista traduz que uma raça, a branca, inferioriza outra raça, a preta, por nenhum motivo além da própria existência desta raça em si. Isso desencadeia consequências que se tornam parte da estrutura da sociedade e que se naturalizam com o tempo.

Edson Tsung Chi Hsueh morreu em trote na USP
O caso de Edson Tsung Chi Hsueh completa 22 anos este ano. O jovem morreu sob circunstâncias misteriosas na piscina da festa dos calouros da Universidade de São Paulo (USP). Em um dos áudios vazados, uma voz feminina diz para o colega, um dos suspeitos do crime que até hoje não tem solução: “Ele foi brincar de caldo com o japonês”. (Facebook/Reprodução)

No Brasil, justamente pelo alto fluxo de imigrantes de diferentes lugares, criou-se um entendimento vago sobre raça, em que a origem parece ficar de segundo plano para a cor de um indivíduo. O racismo contra pretos na sociedade se consolidou de tal forma que há a concepção binária de que ou se é preto ou branco, o que faz com que as populações amarelas sejam diluídas entre os brancos.

Essa colocação dos amarelos como brancos ignora costumes, religiões, comportamentos e origens típicas asiáticas, e provoca indignação quando demonstrações culturais dessa comunidade são diferentes das estabelecidas pelo padrão branco-europeu. A discussão se o preconceito amarelo também é uma forma de racismo, porém, não é absoluta, e muito menos unânime.

Como dito antes, em boa parte dos casos, racismo e preconceito andam de mãos dadas. Entretanto, é necessário reconhecer que há a crença popular do “japonês bem-sucedido/inteligente/rico” no Brasil, o que torna o preconceito amarelo algo diferente do racismo contra pretos, que é inclusive considerado crime no país.

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Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2017, levantou dados que afirmam que descendentes de japoneses ganham salários maiores no mercado brasileiro. A pesquisa foi feita a partir da coleta de 71,7 mil sobrenomes de indivíduos ativos no setor privado. Os de origem japonesa ganhavam, em média, R$ 73 por hora, mais do que o dobro dos brasileiros com sobrenomes ibéricos e quase três vezes mais do que negros e pardos.

A combinação dessa crença popular com a diluição dos asiáticos como brancos no Brasil acaba contribuindo com um dos pilares do preconceito amarelo: a invisibilidade. O asiático acaba ficando sem lugar na sociedade brasileira, fazendo com que sua existência fique presa a certas associações e conviva de forma pacífica, mas não integrada. Na primeira oportunidade conveniente, isso é trazido à tona. E foi o que aconteceu com a covid-19.

Covid-19 escancarando feridas

O começo da pandemia do coronavírus escancarou essa ferida discreta, mas aberta. Quando o vírus foi encontrado na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, os olhos do mundo ocidental se viraram para os imigrantes asiáticos. A ideia de que aquela população era a responsável pela existência do vírus se propagou pelo mundo e não demorou muito para os ataques preconceituosos começarem no Brasil. Foram semanas em que descendentes de japoneses, chineses, coreanos entre outros escutaram comentários que iam desde “Sai com esse coronavírus para lá”, até “Sua chinesa porca, fica espalhando doença para todos nós”.

A discussão chegou às redes sociais e a hashtag #EuNãoSouUmVírus circulou com influencers relatando casos de preconceito que não apenas tinham a ver com a covid-19, mas datavam de desde a infância, com comentários maldosos e apelidos pejorativos. A pandemia colocou, de forma uma triste, um holofote na questão e o preconceito amarelo teve, finalmente, uma oportunidade de ser esclarecido e discutido com seriedade.

Preconceito amarelo nas escolas e faculdades

Tatiana Emy Bopu, tem 18 anos e estuda Rádio, TV e Internet na faculdade Casper Líbero, em São Paulo (SP). Ela conta que desde cedo escuta comentários e piadas de mau gosto, mas que no terceiro ano do Ensino Médio, quando se preparava para os vestibulares, ela viu isso se intensificar – principalmente em relação às matérias de exatas.

“As pessoas ficavam chocadas quando eu dizia que não tirava boas notas em física ou matemática, muitas vezes me olhavam com sentimento de reprovação por ser uma asiática que não se enquadrava nesses padrões”, conta a jovem.

Bopu fala que cansou de ver os esforços e sacrifícios dos amigos descendentes de asiáticos serem desmerecidos em nome da “piada”. “O que me deixava mais triste é ver meus amigos descendentes de asiáticos se matando de estudar para passar em algum vestibular e logo depois ter que ouvir comentários como ‘mas você só passou porque é asiático’”.

A universitária acredita que a pandemia tenha, de fato, colocado o assunto em voga mas que o preço para isso tenha sido muito alto. “Teve um dia que estava indo fazer um exame médico quando ouço um homem gritando para mim: ‘Por culpa sua e dos seus amiguinhos xing lings tem gente morrendo todos os dias! Sai daqui, corona!’”. O ocorrido se junta aos comentários que recebe com frequência nas redes sociais a respeito de sua ascendência.

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Tati Emy
A jovem Tati Emy faz parte do coletivo CasperÁsia na sua faculdade, dedicada ao empoderamento dos alunos amarelos. (Arquivo Pessoal/Divulgação)

“Como trabalho com a internet e redes sociais, já passei por diversas situações como essas. Recebo constantemente comentários como ‘sempre quis ficar com uma japinha’ ou de homens me comparando com personagens de anime”, fala Bopu se referindo ao preconceito conhecido como Yellow Fever, em que homens e mulheres asiáticos são fetichizados simplesmente por serem amarelos.

“Em muitos casos, tratam isso como elogio, e cada um pode interpretar de forma diferente, mas para mim é realmente bem desconfortável esse tipo de comentário.”

Bopu faz parte de um coletivo em sua faculdade dedicado a alunos e ex-alunos asiáticos, o CasperÁsia. O grupo foi fundado em 2018 por três universitários asiático-brasileiros que, na recepção de calouros, perceberam que passavam por diversas situações parecidas por conta de suas origens.

O movimento representa a onda crescente de reconhecimento e empoderamento dos amarelos, incluindo o ambiente escolar – que, por vezes, é tão hostil para esse grupo. “Nosso objetivo é lutar contra narrativas orientalistas e preconceituosas, principalmente no campo da comunicação”, explica. “Além disso, serve como espaço de reflexão e autocrítica ativa em relação à participação de asiáticos na pauta antirracista. Já foram realizados encontros pessoais para debates, porém, por causa da pandemia, tivemos que ficar apenas por encontros virtuais.”

Assim como a maioria dos preconceitos, Bopu defende que a informação é o melhor remédio. “Vejo que muitas pessoas acabam fazendo esse tipo de ‘brincadeira’ na inocência, não fazendo ideia que isso pode ofender alguém”.

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O reconhecimento dos amarelos na sociedade e a reflexão por parte dos não-amarelos que certos comentários não são brincadeiras é um primeiro passo. “Acho que o essencial é respeitar a individualidade, não desmerecer o esforço pelas conquistas pelo simples fato de a pessoa ser asiática”, diz.

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