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Revolta da Chibata: por que Almirante Negro pode ser reconhecido como herói nacional

João Cândido foi o principal líder da revolta, em 1910, contra os castigos físicos na Marinha brasileira

Por Paulo Zocchi
18 Maio 2024, 15h00

A proposta de homenagem ao marinheiro conhecido como Almirante Negro, que liderou uma revolta há mais de cem anos contra as punições com chicote na Marinha, está sofrendo oposição do comando da arma e causando polêmica no Congresso Nacional. Um projeto de lei de autoria do deputado Lindbergh Faria (PT-RJ), inclui o nome de João Cândido Felisberto no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Já aprovado no Senado, tramita agora na Câmara dos Deputados. João Cândido comandou a Revolta da Chibata, em 1910, contra o uso de chicotadas para punir marinheiros, resquício do período da escravidão – abolida 22 anos antes – nas normas da Marinha.

O almirante Marcos Olsen, atual comandante da Marinha, declarou sua oposição ao projeto, afirmando que, mesmo que o açoite seja condenável, a revolta “se deu pela ação violenta de abjetos marinheiros”. Em nota oficial, explicou que condena a homenagem a um marinheiro que violou a hierarquia e a disciplina da arma. Sua posição é apoiada por parlamentares como o deputado federal Gilberto Silva (PL-PB), crítico da revolta.

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A Revolta da Chibata

O fato de haver um debate ainda hoje mostra a importância da Revolta da Chibata na história brasileira. Ocorre que, durante muito tempo, o episódio foi banido da memória nacional, por ser incômodo às elites. Seu principal líder, João Cândido (1880-1969), sobreviveu à revolta, mas teve uma vida de muita pobreza, e só foi anistiado pelo Congresso Nacional em 2008, 39 anos após a sua morte.

Marinheiros durante a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910
Marinheiros durante a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910 (Augusto Malta/Editora Abril)

Preste atenção à foto acima, que mostra os marinheiros à época da revolta: quase todos são negros. Assim era a Marinha brasileira nas primeiras décadas da República: marujos negros em sua quase totalidade, oficiais brancos. A escravidão no Brasil havia acabado em 13 de maio de 1888, e, com ela, os castigos físicos aos escravizados, como o uso do chicote. Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, também foram abolidos na Marinha. No entanto, no ano seguinte, aprovou-se um código disciplinar para a Marinha prevendo a punição de “25 chibatadas” (chicotadas). A elite branca dos oficiais restabelecia assim na Marinha o castigo dado a escravizados.

No início do século 20, o descontentamento com os maus-tratos cresce, sobretudo quando os marinheiros comparam a situação com a de outros países. Em 1909, centenas de marinheiros brasileiros vão para a Inglaterra receber o encouraçado Minas Gerais, um dos mais modernos do mundo à época. Lá, ficam sabendo, por exemplo, da revolta do encouraçado Potemkin, na Rússia, em 1905. Começam então a articular um motim no Brasil.

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O levante dos marinheiros

Marinheiros brasileiros pardos e pretos posam para um fotógrafo a bordo do Minas Geraes, como parte de uma série de fotografias provavelmente tomadas durante a visita do navio aos Estados Unidos no início de 1913.
Marinheiros brasileiros pardos e pretos posam para um fotógrafo a bordo do Minas Geraes, como parte de uma série de fotografias provavelmente tomadas durante a visita do navio aos Estados Unidos no início de 1913. (Bain News Service/Wikimedia Commons)

As eleições presidenciais de 1910 são vencidas pelo marechal Hermes da Fonseca. O levante fica marcado para dez dias após a sua posse. Um acontecimento, porém, vai antecipá-lo: em 16 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues, do encouraçado Minas Gerais, é submetido a 250 chicotadas à vista de toda a tripulação, por ter ferido à navalha um cabo que o acusou de um delito. Mesmo após Rodrigues perder os sentidos, o castigo prossegue.

Em 22 de novembro de 1910, estoura a Revolta da Chibata. Aderem ao levante 2.300 marinheiros, nos encouraçados São Paulo e Minas Gerais, no cruzador Bahia e em outras embarcações fundeadas na baía de Guanabara. Na ação, seis oficiais são mortos. Os canhões são apontados para o Rio de Janeiro, a capital federal, e, em particular, para o Palácio do Catete, sede da Presidência da República.

João Cândido, chamado de “Almirante Negro”, formula uma carta simples com as exigências: “O governo tem de acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia aos revoltosos. Senão, a gente bombardeia a cidade”. As negociações começaram. Em 25 de novembro, o Congresso Nacional aprova a anistia. No dia seguinte, o presidente Hermes da Fonseca aceita as reivindicações, mesmo com a resistência da cúpula da Marinha, disposta ao enfrentamento. No fim, os marinheiros depõem as armas e devolvem o comando dos navios aos comandantes.

Traição e repressão aos revoltosos

O compromisso da anistia, porém, não é cumprido. Em dois dias, começam as prisões dos revoltosos. Em reação à traição do compromisso que encerrou a revolta, 600 fuzileiros da Ilha das Cobras se amotinam. A resposta é implacável: são bombardeados e morrem quase 500. Os demais são presos. Dezoito marinheiros, entre os quais João Cândido, são aprisionados numa cela minúscula, na qual é jogada cal virgem com água. Um dia depois, só sobrevivem João Cândido e mais um. Ele continua detido e, mais tarde, é internado em um hospício.

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Centenas de ex-revoltosos acabam deportados para a Amazônia (para trabalho forçado em seringais) ou são mortos. Em 1912, João Cândido é absolvido da acusação de apoiar o motim da Ilha das Cobras, é solto, mas permanece expulso da Marinha. Só com a anistia de 24 de julho de 2008, aprovada pelo Congresso Nacional, João Cândido e seus companheiros são reabilitados.

A Revolta da Chibata é exemplar do cenário da República Velha: ainda permaneciam aspectos do Brasil escravocrata, com a forte opressão e discriminação dos negros, e as questões sociais no país eram tratadas como caso de polícia, ou seja, na base da repressão armada. Mas, com a Revolta da Chibata, apesar do alto custo humano, os marinheiros impuseram o fim dos castigos físicos na Marinha brasileira.

Almirante Negro

João Cândido foi homenageado pelos músicos Aldir Blanc e João Bosco com a magnífica canção “Mestre Sala dos Mares”, composta no início dos anos 1970. Veja a letra.

Mestre Sala Dos Mares

Há muito tempo nas águas da Guanabara

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O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo feiticeiro

A quem a história não esqueceu

 

Conhecido como o Navegante Negro

Tinha a dignidade de um mestre-sala

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E ao acenar pelo mar

Na alegria das regatas

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas

Jovens polacas

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E por batalhões de mulatas

 

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos santos

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração do pessoal do porão

Que a exemplo do feiticeiro gritava então

 

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias

Glória à farofa, à cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa história

Não esquecemos jamais

 

Salve o Navegante Negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

 

Mas salve

Salve o Navegante Negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

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