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Tema de redação: o que é a cultura do estupro

O termo é usado desde a década de 1970, mas o problema está longe de ter começado ou terminado nesta época

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 22 fev 2024, 14h51 - Publicado em 3 nov 2020, 17h55

Embora assombrosas, as declarações sobre violência sexual e a banalização do ato estão longe de ser inéditas por aqui. Em 2014, o presidente Jair Bolsonaro, então deputado federal, afirmou que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada porque era “muito feia” e não fazia seu gênero. Dois anos depois, o caso de estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro por cerca de 30 homens chocou tanto pela brutalidade do ato quanto pelos comentários que suscitou depois de revelado que a jovem era usuária de drogas e namorava um dos envolvidos.

Há, em todos esses episódios, algo em comum: a culpabilização da vítima. Seja por estar bêbada ou por qualquer outra conduta tida como moralmente condenável, a mulher deixa de ser vista como vítima e passa a ser culpada pela violência que sofreu. O relatório Tolerância social à violência contra as mulheres, divulgado em 2014 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), revelou que 58% dos entrevistados concordavam com a afirmação de que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.

Essa é apenas uma das faces da chamada cultura do estupro, que chegou a ser tema de questão no vestibular da Unesp em 2016 e que, com a repercussão de casos recentes, pode voltar a aparecer nas provas deste ano. Para entender as raízes dessa violência, como e quando o fenômeno passou a ser estudado e até por que ele recebeu o título de “cultura”, o GUIA conversou com a professora do Departamento de Antropologia da USP Silvana de Souza Nascimento.

Por que cultura?

O termo “cultura do estupro” foi cunhado na década de 1970, durante a segunda onda feminista, em uma tentativa de explicar por que o estupro, ao contrário do que pregava (e ainda prega) o senso comum, é uma forma de violência tão comum e naturalizada. E por isso também invisibilizada.

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A palavra “cultura’ foi usada por essas ativistas e continua sendo aceita por uma parte dos pesquisadores do campo das Ciências Sociais porque busca expressar que o ato do estupro nas sociedades não tem uma origem “natural”, biológica, mas sim cultural, já que é motivado por uma estrutura e uma série de crenças que objetificam o corpo feminino e o colocam como propriedade do homem.

A pesquisadora Silvana Nascimento deixa, no entanto, o alerta sobre uma outra possível interpretação do termo cultura. É preciso cuidado, já que falar de “aspectos culturais” muitas vezes pode ser visto como uma forma de justificar violências e silenciar discussões sobre elas – afinal, faz parte da cultura, não? O estupro, segundo a professora, faz parte de um sistema histórico-social de longa duração baseado na ideia de dominação masculina.

Como a cultura do estupro opera

Este sistema histórico-social mencionado por Silvana está presente em diferentes partes do mundo e operando com algumas particularidades, embora sempre calcado na ideia de inferioridade da mulher. No Brasil, explica, “está vinculado ao processo de colonização e ao desdobramento de um certo poder patriarcal que se mantém até hoje com novos formatos.”

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O patriarcado é o sistema social em que o poder está sempre atrelado à figura masculina, que é quem assume a liderança política, controla os bens materiais, estipula os padrões morais e assume diversas outras formas de dominação. Não entendeu muito bem como esse conjunto de “poderes” se relaciona com a cultura do estupro? Basta pensar que as condutas morais que as mulheres são condicionadas a seguir hoje foram majoritariamente estipuladas sob essa perspectiva masculina – como a ideia de que mulheres não devem beber muito, usar roupas curtas ou terem controle sobre sua sexualidade.

O dado do relatório do Ipea mencionado antes corrobora isso: uma grande parte da sociedade acredita que o estupro poderia ser evitado se as mulheres se comportassem melhor, ou seja, se seguissem esse conjunto de regras associadas ao modelo patriarcal. A pesquisa levantou ainda outras informações relevantes para pensar o assunto:

  • 54,9% dos entrevistados concordaram com a afirmação de que “Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama”;
  • 27,2% acreditam que “A mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade”;
  • 63,8% concordam que “o homem deve ser a cabeça do lar”.

São crenças e normas como essa, socialmente aceitas pela sociedade, que contribuem para que os casos de estupro sejam relativizados caso tenham ocorrido em circunstâncias nas quais as mulheres possam ser responsabilizadas (como quando estão bêbadas) ou em casos em que o poder do homem sob aquela mulher é considerado inquestionável, que é o que ocorre nos estupros conjugais.

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Sinais de que vivemos em uma sociedade tolerante ao estupro

É por tudo isso que a chamada “cultura do estupro” se expressa não somente pelos atos de violência sexual que se concretizam, mas por todo o contexto histórico que permite que eles aconteçam. De acordo com Silvana Nascimento, é possível identificar alguns sinais de que vivemos sob essa cultura, como os altos números de feminicídio e transfeminicídios e até mesmo a impunidade nos casos de violência contra a mulher já registrados. “Os números de denúncias de estupro são muito menores do que os que realmente acontecem, mas quando há processos, muitas vezes os agressores não são condenados”, exemplifica.

Mesmo assim, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foi registrado um estupro a cada 8 minutos no país em 2019. Foram 66.123 boletins de ocorrência e a maioria das vítimas (85,7%) era do sexo feminino.

Outro indício de uma sociedade conivente com o estupro é a tolerância a outros assédios “menores”, como assovios na rua ou toques no transporte público. Afinal, são todos pequenos sinais de que as mulheres não têm autoridade sobre o próprio corpo.

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A professora da USP cita ainda diferentes formas de desigualdade de gênero que facilitam essa cultura do estupro, como a divisão sexual do trabalho e as disparidades salariais. Em entrevista ao Nexo, Arielle Sagrillo Scarpati, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, afirmou que há culturas que coibem essa normalização da violência de gênero. Segundo ela, nesses culturas há uma disparidade menor entre gêneros, em níveis diversos – na representatividade política, nos salários, na divisão de tarefas dentro de casa. Em um outro texto publicado aqui no GUIA, relatamos qual a situação do Brasil em relação à desigualdade de gênero a partir de um relatório publicado pelo Fórum Econômico Mundial. Um spoiler: ela está longe de ser boa.

Monstro ou inocente: o papel do homem

Em muitos casos de violência contra a mulher, o homem acaba sendo colocado no lugar de vítima – por ter sido “provocado” (afinal, ela o traiu) ou por não ter “maturidade” (era só um menino) para entender a situação. No entanto, os crimes que dão menos margem para esse tipo de argumentação, como os estupros coletivos ou de menores, acabam construindo  a ideia de que estupradores são “monstros” e, portanto, um ponto fora da curva. Nesse contexto, os casos de estupro passam a ser entendidos como exceção e pouco recorrentes. O que é desmentido pelos dados.

Uma frase que vez ou outra ressurge em cartazes ou mesmo posts associados ao movimento feminista ilustra bem a contradição, que encontra respaldo em pesquisas e levantamentos oficiais: “por que toda mulher conhece outra mulher que já foi estuprada mas nenhum homem conhece um estuprador?”. Só no primeiro semestre deste ano, 8.182 mulheres foram estupradas no Brasil segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública  – lembrando ainda que existe uma forte tendência entre as vítimas de não fazer a denúncia. A queda de 23% em relação ao número de casos registrados no ano passado é justificada, no relatório, pela maior dificuldade que as vítimas enfrentaram de fazer denúncias em meio à pandemia. Numa situação de quarentena e isolamento, como sair da casa em que se vive com o agressor e, muitos casos, os filhos?

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O relatório apontou ainda que, do total dos estupros de vulnerável (menores de 14 anos) registrados entre janeiro e julho de 2020, 84,1% foram cometidos por pessoas conhecidas da vítima – amigos da família, pais, irmãos, tios ou outros parentes. Evidência de que estupradores não são “monstros” ou exceções. Estão muitas vezes dentro da casa e das famílias das vítimas.

Caminhos para a superação (e para a proposta de intervenção)

A ministra Damares Alves, que chefia hoje a pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi uma das vozes a se pronunciar contra a impunidade no caso do jogador Robinho. “Cadeia imediatamente, não tenho outra palavra para falar. Ainda cabe recurso, mas o vazamento dos áudios, gente. Querem mais o quê? Cadeia. Nenhum estuprador pode ser aplaudido. O cara quer voltar para o campo para posar como herói”, disse a jornalistas na última segunda (19), na entrada do Palácio do Planalto.

O combate à impunidade em casos de violência contra a mulher é uma das medidas a serem implementadas para coibir os crimes de estupro. Mas não é efetiva a longo prazo se aplicada isoladamente: é preciso pensar em outras políticas públicas que modifiquem estruturalmente a percepção social em relação às mulheres. “As temáticas de gênero precisam ser trabalhadas desde a educação infantil com as crianças, para que elas possam crescer instruídas pelos princípios dos direitos humanos e dos direitos das mulheres”, explica Silvana Nascimento.

Infelizmente, a tendência observada nos últimos anos caminha no sentido contrário a essa conscientização. O próprio Ministério de Damares extinguiu, em abril do ano passado, diversos comitês que trabalhavam pela promoção de igualdade de gênero e da diversidade e há polêmica sobre a inclusão da educação sexual (que poderia ajudar a identificar mais rapidamente o abuso especialmente entre crianças). No plano dos discursos, o alarde sobre uma suposta “ideologia de gênero” freia o debate nas escolas e dificulta o combate à cultura do estupro pela conscientização.

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