Conheça “Hilda Furacão”, clássico brasileiro que é sucesso no TikTok gringo
História da jovem que trocou a elite mineira pela prostituição ganhou a rede social, repercutindo cenas da adaptação com Ana Paula Arósio no papel principal

Depois de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” virar a cabeça de uma leitora norte-americana e “A Hora da Estrela” se tornar livro de cabeceira de Olivia Rodrigo, um novo romance brasileiro adentra o seleto clube dos ‘viralizados na gringa’. “Hilda Furacão”, livro de Roberto Drummond (1933-2002) publicado em 1991, vem ganhado o TikTok com edits (vídeos curtos, editados para as redes) da minissérie da Globo, de 1998, que adapta a obra e é estrelada por Ana Paula Arósio e Rodrigo Santoro.
O romance é um daqueles polêmicos por natureza. Baseado na vida de Hilda Maia Valentim (1930-2014), a verdadeira Hilda Furacão, o autor mesclou comentário social com ficção para recriar a atmosfera conservadora da Belo Horizonte do final dos anos 1950. Entre conflitos de política, religiosidade e censura moral, a obra conta a história de uma jovem rica que abandona a vida de privilégios para viver da prohttps://www.tiktok.com/@asthclby/video/7367912794022284550?_r=1&_t=ZM-8z16ELJLbHUstituição.
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“Como adianta uma das epígrafes de Dostoievski presentes no livro, o escritor ‘não deve inventar nunca a fábula nem a intriga e deve utilizar o que a própria vida oferece’. Roberto Drummond parte de personagens reais, lugares e fatos concretos para criar uma história ficcional no contexto social e político do Brasil no final da década de 1950”, comenta Marco Antonio Xavier, professor de literatura do colégio Anglo Leonardo da Vinci.
Conheça mais sobre o polêmico “Hilda Furacão” e entenda porque a história ainda gera tanto fascínio, mais de 30 anos depois.
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Retrato de uma época

O pontapé da história acontece em 1957, quando Hilda, conhecida como “garota do maiô dourado” por suas aparições magnéticas na piscina do Minas Tênis Clube, decide trocar o conforto da alta sociedade pela vida no meretrício. Seu destino é o Maravilhoso Hotel, reduto da boemia belo-horizontina, onde passa a viver e atender clientes no quarto 304. A escolha da jovem não apenas choca a elite mineira, como também põe em xeque o senso da “moral e bons costumes” da cidade cristã conservadora.
Em pouco tempo, Hilda conquista os homens da cidade. Sua figura ganha ares míticos e não há um cidadão da capital mineira que não tenha desejado experimentar os feitiços de Hilda Furacão. A meretriz vira o terror das matriarcas, símbolo maior da libertinagem e da luxúria. Para os mais radicais, a moça seria até mesmo o próprio Satanás, que veio à cidade para tirar o sono e a paz dos bons católicos.
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“A polêmica se instaura quando surge a campanha para tirar a Zona Boêmia do coração da cidade e levar prostitutas, hotéis, pensões, bares e o Maravilhoso Hotel para a ‘Cidade das Camélias’, que seria construída longe dali, na periferia. O projeto do padre Cyr Assumpção tem o apoio da ‘Liga de Defesa da Moral e dos Bons Costumes’, presidida por Dona Loló Ventura”, conta o professor, destacando a senhora como uma espécie de antítese à Hilda.
A trama é narrada por Roberto, jovem jornalista do “Estado de Minas” que sonha com o dia da revolução comunista. Ele conta a trajetória de Hilda de 1957 até 1º de abril de 1964, exatamente um dia após o golpe que deu início à Ditadura Militar.
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Conhecemos assim uma galeria de personagens que orbitam a prostituta de alguma forma. Entre eles, Frei Malthus, frade idealista (inspirado livremente na figura do real Frei Betto), que se vê dividido entre sua vocação religiosa e uma paixão arrebatadora que desenvolve pela meretriz. O sentimento, que surge após a tentativa de “exorcismo” de Hilda liderada por Dona Loló Ventura, é digno de obra de arte barroca. Essa paixão, que ganha ares de romance proibido, se torna um dos fios narrativos do romance, usado para explorar os choques entre desejo e devoção, luxúria e moralidade.
“—Responda, Frei Malthus: alguma vez, você que é Santo, soube como vive um operário brasileiro? Pois eu, que você diz que sou o demônio, sei como vive o operário brasileiro. Sei da fome do povo brasileiro, a fome dos operários, dos favelados, dos subempregados, dos desempregados, e dos que nada têm e que sentem uma fome muito além do pão nosso de cada dia, Frei Malthus. Sentem uma fome de carinho, fome de esperança, meu querido Frei Malthus.”
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Junto a Roberto e Malthus, temos também Aramel, o belo, que compõe o trio de amigos conhecido como os “três mosqueteiros”. Ele sonha em ser ator e trabalhar nos filmes de Hollywood — mas, como o professor do Anglo pontua, acaba a vida como uma espécie de gigolô. Outros personagens incluem Mestre Gildo, um artista de rua; Cláudio, jovem boêmio que se aproxima de Hilda; e as chamadas “carolas da cidade”, mulheres conservadoras, “do lar”, lideradas por Dona Loló Ventura, que estão empenhadas em combater Hilda e tudo aquilo que ela representa.
“O espectro ideológico e político da época se mostra na convivência das personagens. Um bom exemplo é a família de Roberto, comunista e revolucionário de esquerda, em contraste com o tio José Vianna, nazista confesso e casado com Tia Lúcia, uma camisa-verde, militante do Partido Integralista de Plínio Salgado”, comenta o professor.
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Símbolo de emancipação

Para o professor Marco Antonio Xavier, a força do livro está justamente em seu caráter simbólico. “Hilda é mais que uma protagonista sedutora; ela encarna a resistência contra as amarras impostas pela sociedade patriarcal. Sua trajetória provoca desconforto e fascínio, sendo interpretada por alguns como símbolo de rebeldia e por outros como figura trágica”, afirma. A trama, ainda que ancorada numa realidade recortada (a Belo Horizonte dos anos 1950 e 1960), é universal e atemporal — não à toa, o fascínio do TikTok, mesmo com as barreiras da língua.
A história de Hilda, em sua própria maneira, é sobre a emancipação feminina. “Ao escolher um caminho que afronta as convenções, Hilda expõe os limites e contradições da elite mineira, ao mesmo tempo em que revela o custo emocional da liberdade em um país que caminhava para uma ditadura militar.”
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Com um estilo marcado pelo tom irônico e pela metalinguagem (com trechos em que o narrador conversa com o leitor), Roberto Drummond conduz o leitor não apenas por uma trama linear, mas por um mosaico de observações sobre o Brasil da época. A hipocrisia social, que contrasta moral pública e comportamentos privados; o conflito entre desejo e obrigação religiosa; a condição feminina diante de um sistema patriarcal; e a eterna tensão entre tradição e rebeldia dão o tom do romance.
“É um retrato de como a coragem de romper com expectativas pode abalar não só indivíduos, mas todo um sistema simbólico que tenta controlar comportamentos — especialmente os femininos”, conclui Xavier.
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