Embora o pintor vienense Gustav Klimt (1862-1918) tenha afirmado que “agradar a muitos é ruim”, “O Beijo” é um dos quadros mais conhecidos e apreciados no Ocidente. A popularidade do artista é particularmente notável na Áustria, onde ultrapassa barreiras sociais: reproduções de suas obras podem decorar as salas da elite e do governo ou enfeitar o quarto de um estudante secundarista.
Entretanto, o chamado “período dourado” de Klimt, a que pertence “O Beijo” e que costuma identificar seu estilo, tem características bem distintas das obras que marcaram o início de sua carreira. Aos 21 anos, quando se formou na Escola de Artes Decorativas de Viena, em 1882, abriu com outros artistas um estúdio especializado em pinturas murais. A Cooperativa dos Artistas, como se chamava, ornamentou vários museus, salões e teatros, entre eles o Teatro Imperial de Viena. A referência para a pintura do grupo, porém, ainda era a arte renascentista, influenciada pelo naturalismo do século 19.
A virada aconteceu em 1897, quando Klimt e outros artistas, entre os quais o também arquiteto Joseph Hoffmann e o cenógrafo Alfred Roller, se rebelaram contra os paradigmas clássicos: estava fundada a Secessão de Viena. Os conterrâneos de Klimt e ele próprio presenciavam o lento e irremediável esfacelamento do Império Austro-Húngaro. A arte feita pelos conservadores mantinha intacta a glória de um regime que anos mais tarde, após a Primeira Guerra Mundial, sucumbiria.
No clima da Viena fin-de-siècle, o estilo art nouveau satisfazia os anseios do ideário burguês emergente. As formas curvas e sinuosas, a preferência por tons frios e pálidos, a temática naturalista, a rejeição à simetria e à proporção procuravam comunicar o sentimento de leveza, inovação e otimismo da época.
Em toda a Europa, na passagem do século 19 para o 20, discutia-se o papel do artista na sociedade diante das transformações econômicas e políticas. Esse contexto explica a divisa colocada na porta do edifício onde se reuniam os membros da Secessão: “A cada época a sua arte, à arte a sua liberdade”. Tais pintores declaravam perseguir uma “missão artística” que não tinha apenas fins comerciais, seria aberta ao “modernismo estrangeiro” e fortaleceria a identidade austríaca, “provocando efeitos na sociedade e no Estado”.
Para Klimt, porém, a crise não estava restrita às esferas política e econômica. Era impossível ignorar as postulações de seu contemporâneo Sigmund Freud (1856-1939) sobre uma nova ciência: a psicanálise. Para o historiador norte-americano Carl Schorske, “(Klimt) foi um investigador e um examinador de tudo o que era problemático e dúbio na experiência individual e numa cultura. Tal como Freud, o artista procurava a resposta aos mistérios através da exploração dos abismos pessoais”.
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O sonho – um dos principais instrumentos dos estudos psicanalíticos – passou a preencher a atmosfera das obras do artista. Além disso, apareceram em sua fórmula decorativa traços da arte bizantina. Aos motivos delicados, o quieto e taciturno Klimt acrescentou tons pálidos, cinéreos e perolados.
Somou-se a eles o brilho do ouro e dos esmaltes para colorir uma série de figuras femininas (sua temática principal) e compor quadros como “O Beijo”.
Um afeto eternizado
Na tela, o enlace transforma o casal num corpo coeso, em que os limites de um e outro se confundem. No entanto, a diferenciação entre os gêneros e sua afirmação como indivíduos transparecem na ornamentação dos trajes.
Ao homem está associado um mosaico retangular, com formas destacadas em cinza e preto; à mulher, contornos e curvas suaves e também motivos florais de muitas cores.Da figura masculina emanam o movimento e a força da obra. A feminina, ao contrário, é um elemento passivo e está de joelhos enquanto é beijada.
Para além das análises estéticas formais, o que talvez explique a grande identificação dos espectadores com “O Beijo” seja a representação de um cenário ideal de felicidade e harmonia erótica. O isolamento e o cenário impreciso fazem o casal parecer descolado da realidade, deixando de perceber a si mesmo e o mundo. Os dois exibem-se petrificados, alheios à ameaça da decadência provocada pela passagem do tempo.
Reservado sobre sua vida pessoal, Klimt dizia que quem quisesse saber algo sobre ele deveria olhar seus quadros, pois não se julgava “particularmente interessante”. Talvez por isso nunca tenha pintado um auto-retrato. O artista não se casou, mas teve filhos. Ao longo da vida, teve casos com suas modelos e nutriu um evidente fetiche pela figura feminina.
Precursor da estilização do erotismo, algumas de suas obras foram confiscadas e criticadas pela ousadia. Tal característica, porém, inspirou Egon Schiele (1890-1918), que, também austríaco e amigo de Klimt, na Viena do começo do século 20 recebeu a alcunha de “o pintor das imagens indecentes”.
Klimt é pop
Há quem viaje a Viena, capital da Áustria, com o único objetivo de ver de perto alguns quadros de Gustav Klimt. O museólogo Gottfried Fliedl afirma que, de toda a história da arte, suas pinturas talvez sejam as mais exploradas pela publicidade.
Na Áustria, os mais aficionados podem decorar seu banheiro com azulejos ilustrados com obras de Klimt. Podem-se adquirir reproduções na forma de quadros bordados em ponto de cruz ou de pôsteres. As imagens decoram ainda cartões-postais, capas de livros, outdoors, além de medalhas e moedas.
Uma delas, fabricada em ouro, vale 100 euros e é muito procurada por colecionadores: de um lado, Klimt aparece em seu ateliê diante de duas obras inacabadas; do outro, está gravado em relevo um recorte de “O Beijo”. Na década de 1990, quadros do artista foram tema de uma das coleções da grife de roupas e acessórios Versace.
Ao mesmo tempo, a obra de Klimt é valorizada pelo mercado. Em 2006, o “Retrato de Adele Bloch-Bauer” (1907) foi vendido por US$ 135 milhões, uma das pinturas mais caras do mundo.
O Beijo / Gustav Klimt
Técnica: óleo sobre tela
Tamanho: 180 x 180 cm
Local: Galeria Austríaca Belvedere, Viena (Áustria)
Esse texto faz parte do especial “100 Obras Essenciais da Pintura Mundial”, publicado em 2008 pela revista Bravo!
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