Por que é tão fácil ficar endividado no Brasil?
Muitos nem imaginam, mas já fazem parte da estatística dos endividados no país. Entenda as causas, dos cartões de crédito à economia brasileira
O Brasil é uma das dez nações com a população mais endividada do mundo. Para se ter uma ideia, no início de 2023, quase 80% dos brasileiros estavam com dívidas – acredite, você pode fazer parte dessa estatística e nem sabe disso. Para completar, quatro em cada cinco pessoas por aqui estão em situação econômica preocupante, de acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Mas como o país atingiu esses números? Por que, além de endividadas, tantas pessoas estão inadimplentes? Segundo especialistas, as causas são multifatoriais. Nessa matéria, o GUIA DO ESTUDANTE destrincha as razões, o atual cenário do país, o perfil dos brasileiros endividados e como muitos estudantes também são prejudicados por essa realidade.
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A diferença entre endividamento e inadimplência
Existem duas palavras centrais quando o debate são as dívidas, e é importante entendê-las bem antes de se aprofundar no tema. Endividamento e inadimplência são conceitos que, apesar de semelhantes, possuem suas diferenças.
O endividamento ocorre quando a pessoa deve um valor que precisa ser pago em algum momento futuro pré-determinado. Um exemplo seria quando alguém compra um produto parcelado: a compra foi efetuada com uma quantia inicial (primeira parcela), mas ainda existe o compromisso de pagar o restante do valor ao longo dos meses.
Já a inadimplência significa que a pessoa tinha um período determinado para pagar uma dívida e o prazo não foi cumprido. Se o indivíduo, por exemplo, deixa de pagar um boleto na data estipulada no documento ou não quita a fatura do cartão a tempo se torna inadimplente.
De acordo com a pesquisa da CNC, cerca de 11% das famílias brasileiras afirmaram que não teriam condições de pagar contas atrasadas. E, em abril do ano passado, o nível de inadimplência das famílias brasileiras ultrapassou 28% – o maior patamar desde 2010, quando o levantamento foi realizado pela primeira vez.
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Causas do endividamento
Engana-se quem pensa que, no Brasil, as pessoas endividam-se apenas para comprar itens tido como supérfluos. A principal causa de endividamento do brasileiro é a compra de alimentos. De acordo com a pesquisa “Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2023”, das dívidas contraídas por conta do cartão de crédito, 59% correspondem a gastos de alimentos em supermercados.
Em segundo lugar, destaca-se a compra de produtos como roupas, calçados, eletrodomésticos, dentre outros, sendo responsável por 46% dos endividamentos por cartão dos consumidores no Brasil. Inclusive, segundo a pesquisa, a maior fonte das dívidas é o cartão de crédito.
O endividamento, no entanto, não ocorre no vácuo. O desemprego, os juros mais altos, a queda na renda e todos os fatores associados aos índices econômicos do país acabam pesando individualmente no bolso de cada cidadão – ou na fatura do cartão de crédito.
Como a economia do país pode gerar mais endividados
Os recordes de endividamento recentes ocorreram em momentos de baixa tração econômica e inflação alta no Brasil. Além disso, a renda média dos trabalhadores atingiu o menor nível desde 2012, o primeiro ano da série histórica do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
É a receita perfeita para o endividamento: com a inflação alta e a renda caindo, muita gente não consegue pagar as contas mais básicas. “Tanto que o endividamento hoje não está em gastos muito grandes como financiamento de casa ou de carro. Está em cartão de crédito, em gastos básicos que as famílias não estão conseguindo suprir. E o desemprego é um agravante disso”, afirmou Tainari Taioka, pesquisadora do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP), em entrevista ao Nexo. Na mesma reportagem, a coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV-Eaesp, Claudia Yoshinaga também culpou a alta da taxa de juros. Os juros mais altos acabam elevando o valor das dívidas e dificultando as renegociações.
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Para completar, o incentivo ao uso de cartão de crédito é crescente no país, com a oferta de cada vez mais produtos e a popularização de fintechs como os bancos digitais, segundo afirma a economista da CNC, Izis Ferreira, à BBC Brasil. Para os mais ricos, destaca-se os serviços pagos em cartão de crédito, como viagens e passagens aéreas.
Qual é o perfil dos endividados?
O brasileiro, de uma maneira geral, é habituado a contrair dívidas. Mas existe um perfil mais específico daqueles que acabam imersos em parcelas a pagar: são, em sua maioria, mulheres de baixa escolaridade. Dê só uma olhada nos dados CNC de 2022:
- 79,5% das mulheres se endividaram naquele ano;
- Em sua maioria, com menos de 35 anos;
- Em termos de escolaridade, tinham Ensino Médio incompleto;
- Residiam nas regiões Sul ou Sudeste.
- No mesmo período, o número de homens que se endividaram foi de 76,7%.
Além disso, entre as famílias lideradas por pessoas sem Ensino Médio completo, 31,2% tinham dívidas em atraso, comparado a 25,8% das famílias de pessoas com segundo grau completo.
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Para além do perfil socioeconômico, também é possível mapear o contexto em que essas pessoas se endividaram e eventualmente se tornaram inadimplentes.
Um dos exemplos ocorre quando a pessoa se endivida por conta de uma situação pontual. Pode ser uma emergência médica, a perda do emprego ou qualquer outro imprevisto que exija que o indivíduo desembolse altas quantias, deixando-o em uma situação de endividamento a curto prazo.
Mas os prejuízos financeiros também podem ser ocasionados por situações comportamentais. A pessoa pode gastar por impulsos, não se organizar com as contas que precisam ser quitadas, confundir datas, esquecer gastos ou não ter um planejamento a longo prazo e economias.
Outro exemplo comum é o do superendividado. Esse perfil vai acumulando dívidas e acaba perdendo a capacidade de acertá-las, pois os compromissos financeiros ultrapassam a renda que a pessoa tem. As contas não são pagas nas datas estipuladas, os juros e multas começam a crescer, e as consequências da inadimplência dificultam ainda mais uma solução, pois a pessoa fica com restrições de crédito e pode até ser acionada juridicamente pelos credores.
Os impactos das dívidas na saúde mental
O aumento da inadimplência no Brasil não traz apenas danos financeiros, como o nome sujo e, consequentemente, dificuldade para a conquista de novos créditos e financiamentos. Ele também afeta o lado socioemocional.
A pesquisa Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro, encomendada pela Serasa, apontou que:
- 83% dos endividados têm dificuldade para dormir por conta das dívidas;
- 78% têm surtos de pensamentos negativos devido aos débitos vencidos;
- 62% sentem impactos no relacionamento conjugal;
- 61% vivem sensação de “crise e ansiedade” ao pensar na dívida;
- 53% revelam sentir “muita tristeza” e “medo do futuro”;
- 51% têm vergonha da condição de endividado.
Inadimplência entre jovens
Não são apenas os mais velhos que encaram problemas financeiros. Segundo dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), 19% dos brasileiros entre 18 e 24 anos estão endividados. Além disso, 46% dos brasileiros com idade entre 25 e 29 anos estão inadimplentes – ou seja, não estão pagando suas dívidas. Juntos, esses dados somam um total de 12,5 milhões de pessoas.
E o que eles têm em comum? Mais da metade dessa população não faz um controle de seus gastos. Um levantamento do Banco Central e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), indica que 70% das pessoas gastam todo ou até mais dinheiro do que ganham. Isso representa 150 milhões de brasileiros que não têm controle sobre a própria vida financeira.
Por isso, o especialista em finanças Guilherme Grillo afirmou, em entrevista ao G1, que uma das soluções para mudar essa realidade seria o investimento em educação financeira nas escolas. Sem os conhecimentos básicos sobre finanças ou sobre planejamento financeiro, as chances de uma pessoa se endividar ao longo da vida aumentam.
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Dívidas no financiamento estudantil
No ano passado, cerca de 1,2 milhão de estudantes que entraram no Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) até o 2º semestre de 2017 estavam com dívidas atrasadas.
Ou seja, mesmo com o diploma em mãos, muitos jovens viram o sonho de concluir um curso universitário se tornar um pesadelo: dívidas chegando a R$ 100 mil, juros, nome sujo e problemas psicológicos já citados anteriormente, como ansiedade e depressão.
Afinal, quem opta por essa modalidade de financiamento dos estudos costuma traçar um plano: fazer um curso superior, formar-se na área, conseguir um emprego assim que concluir a graduação e já iniciar o pagamento do Fies. Mas o problema começa quando, ao se formar, o jovem não consegue vaga na área. Assim, as parcelas se acumulam e a dívida só cresce. Lembrando que se houver atraso de 30 dias no pagamento de uma parcela, o nome da pessoa já é negativado.
E a situação se agrava ainda mais quando a economia do país passa por dificuldades (como ocorreu durante a pandemia de covid-19) que, consequentemente, afetam o mercado de trabalho, reduzindo a quantidade de vagas disponíveis e até os salários.
“É necessário um plano para que o aluno possa ter condições de quitar o seu débito. Não é possível fazer uma proposta que não se enquadre na atual situação dos devedores. Se eles estão inadimplentes é porque não tiveram condições financeiras para honrar o compromisso”, afirmou Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior), em entrevista à BBC.
Programa Desenrola
Para reduzir a quantidade de brasileiros endividados, o governo federal criou o Programa Desenrola. A medida, que entrou em vigor em julho, tem como premissa a renegociação de dívidas bancárias de pessoas com renda entre R$ 2,6 mil e R$ 20 mil.
Desde então, houve uma queda da proporção de famílias endividadas de 78,5% em junho para 78,1% em julho – a primeira redução desde novembro de 2022 – e o volume total de endividados caiu ao menor nível desde janeiro de 2023. O levantamento foi feito na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, divulgado pela CNC.
Para se aprofundar
- “Desenrola Brasil: entenda as regras do programa de renegociação de dívidas”, podcast JR 15 Min;
- “Endividados vivem mau momento no Brasil”, podcast Em Dia com o Direito, transmitido pela Rádio USP;
- “Endividamento, e como sair dele”, podcast O Assunto.
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