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O que são crimes de guerra, afinal?

Conflitos têm regras - que incluem não matar civis, não impedir o transporte de remédios, não bombardear hospitais. Veja a história dos crimes de guerra

Por Raphael Amaral, o Tim
Atualizado em 31 out 2023, 14h44 - Publicado em 31 out 2023, 14h22
Criminosos nazistas levados ao tribunal em Nuremburgo por crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial (Raymond D’Addario/Wikimedia Commons)
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Nos anos 1990, a Guerra do Golfo foi o primeiro conflito televisionado em tempo real para todos os cantos do mundo. Essa guerra – o ataque de uma coalizão militar liderada pelos EUA contra Saddam Hussein, ex-presidente do Iraque – inaugurou uma nova forma de acompanhar conflitos em andamento. Equipes de reportagens enviadas às zonas de guerra realizavam transmissões ao vivo do avanço das tropas, tornando possível acompanhar a guerra pela TV. 

Já a partir de 2003 – com a segunda invasão dos EUA sobre o Iraque -, as transmissões passaram a ser feitas pela internet. Nos últimos anos, com a disseminação de smartphones e redes sociais, as guerras passaram a ser assistidas – e narradas! – por um público global, a partir de filmagens individuais que não mais passavam pelos filtros de grandes empresas de mídia. Agora, não se tratava mais de ver imagens selecionadas por editores de telejornais em uma hora específica do dia: “a hora do jornal da TV”). 

Foi graças a essa revolução tecnológica – e à capacidade de cada pessoa de contar a sua história – que ficamos sabendo, agora em 2023, por meio de imagens de redes sociais, o sofrimento da população da Faixa de Gaza, sob ataque militar israelense. Cenas trágicas, de prédios bombardeados e corpos sem vida, ensanguentados e empoeirados sob escombros trouxeram uma nova compreensão do que significa “estar em guerra”. 

+ Israel e Palestina: entenda a origem do conflito

Conceitos como “crimes de guerra”, “genocídio”, “limpeza étnica” – que antes eram abstratos para quem não morava em zonas de guerra – se tornaram mais conhecidos e passaram a ser usados pela população para classificar o que acontece nos conflitos.

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Nesse sentido, é importante conhecer o histórico de legislações que, desde o século XIX, tentam forçar que governantes, forças armadas, milícias, grupos paramilitares e combatentes armados minimizem o impacto de suas ações sobre as populações civis. Sim, guerras também precisam seguir regras.

O que pode e o que não pode em guerras?

Em 1864, foi realizada a Primeira Convenção de Genebra, na Suíça. Tratava-se de uma conferência internacional na qual diplomatas de diferentes países se comprometeram a seguir determinadas regras durante a ocorrência de conflitos armados. A origem dessa primeira conferência foi a necessidade de elaborar medidas que assegurassem tratamentos médicos, cuidados sanitários, transporte e proteção para soldados feridos. 

No século XX, os horrores gerados pelas duas Guerras Mundiais fez com que acontecessem outras três grandes convenções em Genebra. A IVª Convenção, realizada no ano de 1949, apresentou a novidade de estender proteção também para os civis situados em zonas de guerra.

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Em linhas gerais, as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais fazem parte do Direito Internacional e buscam regular a condução de conflitos armados pelo mundo e limitar ao máximo o alcance de seus efeitos. Atualmente, a Convenção e seus Protocolos são o centro do Direito Internacional Humanitário, ou seja, o conjunto de normas voltado à proteção de pessoas que não participam de disputas armadas, mas são diretamente afetadas por estas (como a população civil, profissionais da área da saúde e agentes humanitários). A proteção também se estende a pessoas que deixaram de participar dos conflitos, como soldados feridos, náufragos, enfermos e mesmo prisioneiros de guerra.

São considerados crime de guerra:

  • a utilização de armas químicas e outros tipos de armamentos específicos que gere sofrimento desnecessário, 
  • matar pessoas que tenham se rendido, 
  • atacar populações civis, cidades desprotegidas e hospitais, 
  • impedir o livre transporte de feridos e medicamentos, 
  • manter sem alimento a população de uma região atacada por algum exército, 
  • impedir que haja zonas demarcadas seguras nas áreas de conflito onde doentes e feridos possam ser tratados

O que são as cortes e tribunais internacionais?

Já no ano de fundação da ONU, em 1945, foi criada a Corte Internacional de Justiça (CIJ), com sede no Palácio da Paz em Haia, na Holanda, que trata sobre disputas jurídicas entre diferentes países. A localização da CIJ faz com que muitas vezes ela seja confundida com o Tribunal Penal Internacional (TPI), também situado na mesma cidade holandesa, conhecido justamente como o “Tribunal de Haia”. O Tribunal Penal Internacional foi criado a partir da elaboração do Estatuto de Roma, estabelecido em 1998. A maior diferença entre essas duas entidades é que a CIJ julga casos relacionados a Estados nacionais, enquanto o TPI julga indivíduos acusados de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. 

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Na teoria, quando tribunais nacionais se mostram incapazes, omissos ou negligentes em punir seus cidadãos que foram apontados como criminosos de guerra, essa acusação é levada ao Tribunal Penal Internacional. Então, caso o Tribunal aceite a acusação, esses indivíduos devem ser encontrados e julgados. Se forem considerados culpados, não há possibilidade de apelar dessa decisão e a pena deverá ser cumprida seguindo o que foi determinado pelo Tribunal. 

A diferença entre genocídio e limpeza étnica

Duas acusações graves que são julgadas no Tribunal – e que costumam ser confundidas como sendo a mesma coisa – são a acusação de crime de genocídio e a de limpeza étnica.

O crime de genocídio ocorre quando existe a intenção de destruir, integralmente ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, por meio de homicídios, ataques militares, massacres, e quaisquer tipos de ações que sujeitem intencionalmente esse grupo à destruição física, total ou parcial, assim como atos que imponham ofensas graves à sua integridade física ou mental. O termo foi criado pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin para categorizar o tipo de campanha de extermínio que os nazistas impuseram contra a população judaica durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Foi esse conceito que norteou a Convenção da ONU de Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em 1948.

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Por sua vez, o conceito de limpeza étnica diz respeito às ações que visem remover forçosamente determinados grupos étnicos de um território, através da violência, destruição e ameaças de graves riscos à integridade física, eliminando sua presença nessa região, assegurando a hegemonia de um outro grupo étnico militarmente mais forte sobre a mesma localidade. Ou seja, trata-se de situações em que grandes contingentes populacionais de determinados grupos étnicos são obrigados a se retirar de um território onde historicamente haviam se estabelecido e formado suas culturas (independentemente de a quanto tempo estivessem situados por lá) sob o risco de serem exterminados. Apesar dessas situações serem constatadas já no contexto da Primeira Guerra Mundial, foi nos anos 1990 que o termo limpeza étnica se popularizou globalmente, em decorrência das Guerras dos Balcãs no Sudeste Europeu (1991-2001). 

Os limites do Direito Internacional

No entanto, uma população que está sendo vítima de extermínio, correndo o risco de ter sua existência literalmente varrida do mapa, não está preocupada se esse massacre é categorizado como “genocídio” ou “limpeza étnica”. Ela quer que os ataques sejam encerrados. A emergência e a penúria a qual se encontram não desaparecem quando o conflito perde apelo nos noticiários e em redes sociais.

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Segundo os dados do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED, em inglês) há, em 2023, no mínimo dez grandes conflitos ocorrendo pelo planeta, afetando cerca de 1,7 bilhão de pessoas, e envolvendo governos, forças armadas, grupos paramilitares, organizações criminosas, mercenários e diversos outros agentes que devastam regiões inteiras e vitimam majoritariamente populações civis. 

As terminologias jurídicas e as delimitações de conceitos relacionados com crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão são fundamentais para que os responsáveis por essas ações sejam devidamente punidos pelos instâncias adequadas. Mesmo que por vezes elas possam resultar em infinitos debates sobre qual a tipificação exata em que determinado crime deva ser enquadrado, sem essas legislações seria ainda mais fácil que essas ações sequer fossem consideradas criminosas. Por outro lado, algumas de suas limitações permanecem evidentes.

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Por quanto tempo, por exemplo, os sobreviventes de famílias destruídas por guerras devem esperar até que alguma decisão seja tomada pelo TPI? As pessoas que tentam sobreviver sem comida, água ou medicação em meio a escombros devem aguardar a realização de quantas rodadas de negociação nos fóruns internacionais até que alguma medida efetiva seja adotada para impedir a continuidade dos ataques militares? O que fazer quando grande parte dos meios de comunicação internacionais criam e disseminam narrativas de aceitação e legitimação ao massacre de populações não-ocidentais? Há genocídios que valem menos do que outros? 

Por fim, o que fazer quando as superpotências do planeta, capazes de moldar as decisões do Conselho de Segurança da ONU, impedem que o extermínio de uma população inteira por uma potência militar seja sequer reconhecido como um massacre em andamento?

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