Quando entraram no curso de Biotecnologia, os estudantes que depois formaram a Equipe de Biologia Sintética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) talvez nunca imaginassem que um dia receberiam a medalha de bronze na maior competição de biologia sintética do mundo, a International Genetically Engineered Machine Competition (iGEM), sediada em Boston, Estados Unidos, em novembro de 2019. A criação que os levou até lá, a GlyFloat, consiste em um “biofiltro” com bactérias geneticamente modificadas capazes de absorver o glifosato da água e utilizá-lo como fonte de nutriente para despoluir rios e lagos.
O glifosato é o agrotóxico mais vendido do mundo, e embora a OMS e mesmo a Anvisa tenham afirmado que pequenas quantidades de glifosato em alimentos não são prejudiciais à saúde humana, o defensivo agrícola tem um grande impacto na fauna e flora das regiões onde é utilizado. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto Butantan, todos os embriões de peixes morreram quando expostos a uma dosagem do glifosato considerada inofensiva pela Anvisa. É por isso que Heloísa Oss, que em 2019 fez parte do grupo que criou o GlyFloat, afirma que a Biotecnologia vem não só para gerar novas formas sustentáveis de produzir, mas para reparar os danos causados pelos sistemas produtivos anteriores. “O simples pensamento sustentável, de “não gerar mais impacto” sobre o meio ambiente, não bastará. Será necessário pensar na regeneração do planeta como um todo”, diz.
Para isso, a Biotecnologia mobiliza conhecimentos de diversas áreas dentro das ciências exatas e biológicas, como genômica, microbiologia, biologia molecular, bioestatística, química analítica, bioinformática, bioprocessos… Apenas para citar algumas disciplinas que estiveram envolvidas na produção do GlyFloat, como explicam três dos professores orientadores do projeto, Emilene Becker, Charley Staats e Giancarlo Pasquali. O objetivo final é a manipulação de organismos vivos para melhorar sua aplicação em qualquer área que seja, gerando novas formas de produção menos nocivas e com melhores resultados.
Em outras palavras, trata-se da materialização da chamada revolução biológica anunciada pelo CEO da iGEM, Randy Rettberg: a fase de domínio molecular que consiste em fazer com que moléculas estejam onde queremos, na hora que queremos, fazendo o que queremos.
O curso de Biotecnologia
Não é difícil se encantar pela Biotecnologia com relatos tão diversos de profissionais da área que estão transformando a informática, o meio ambiente, a saúde, a agricultura. Mas, para os estudantes que pretendem seguir esse caminho, é importante considerar que esse é um curso complexo e multidisciplinar, a começar pelas matérias-base que orientam as outras que serão estudadas na graduação.
Se você não é exatamente fã de Biologia, Química, Física e Matemática, por exemplo, é bom pensar duas vezes antes de escolher estudar Biotecnologia. Afinal, o comum é que os primeiros anos do curso sejam focados nessas matérias “básicas” – assim como se estuda cálculo nos primeiros anos de Engenharia.
Nos dois anos finais do curso, os estudantes podem, geralmente, optar por uma “especialização” na área. Na UFRGS, por exemplo, as ênfases estudadas ao final da graduação são Bioinformática e Biotecnologia Molecular. Mas esse não é um padrão e varia de uma universidade para outra. Isso se deve, especialmente, ao fato de a Biotecnologia ainda não ser uma profissão regulamentada no Brasil – pelo menos por enquanto, uma vez que já existe um projeto de lei tramitando no Senado.
Veja bem, os cursos oferecidos pelas universidades são reconhecidos e avaliados pelo MEC, e quem os cursar receberá o diploma normalmente. O impacto da não regulamentação da profissão é maior no mercado de trabalho, sem um piso salarial e outras questões práticas bem definidas. Em nível de graduação, o que acaba acontecendo, segundo os biotecnologistas que administram o portal Profissão Biotec, é que o curso é menos padronizado e se torna focado no que aquela região geográfica tem de mais proeminente, seja a agricultura ou as pesquisas na área de saúde.
Por isso é importante fazer algumas pesquisas antes de sair se inscrevendo em todos os vestibulares, como aconselha Heloísa: “é necessário investigar como é o curso de Biotecnologia na universidade em que você tem interesse: algumas são voltadas à imunologia, outras são mais empreendedoras, outras puxam para linhas acadêmica”.
Além disso, tenha em mente que o curso de Biotecnologia pode ser oferecido como tecnólogo (formando biotecnológos) ou como uma área da Engenharia. Considerando todas essas modalidades, são mais de 50 cursos oferecidos em todo o Brasil.
Conselhos de veteranas
Já deu para perceber que essa é uma gradução ampla e multidisciplinar, mas ainda assim não é só a experiência em sala de aula que forma um bom profissional dessa área. A dica de Reykla Ramon Bittencourt, uma das criadoras do GlyFloat e que ainda faz parte da Equipe de Biologia Sintética, é se aventurar fora das aulas em projetos de extensão, cursos livres e, porque não, já começar a pensar em uma pós-graduação. Sua colega Heloísa também destaca a importância das Iniciações Científicas e de criar uma boa rede de contatos com pesquisadores que você admira – nunca se sabe quando podem aparecer boas oportunidades!
Por fim, dois conselhos mais práticos: o domínio do inglês, segundo Reykla, é essencial para a leitura de artigos e textos da área, então comece a praticar o idioma o quanto antes. Já Heloísa aconselha a criar e manter sempre atualizado seu currículo Lattes – é por meio dele que outras pessoas conhecerão sua trajetória acadêmica e profissional.
Tudo isso, é claro, sem deixar de lado a paixão pelos estudos e pela Ciência.
Mil e uma possibilidades de atuação
Depois de tudo isso, ainda está em dúvida sobre onde e com o que exatamente um Biotecnologista pode trabalhar? É normal diante de uma profissão com tantas possibilidades! É como pontuou Heloísa: “qualquer área que envolva vida e tecnologia a Biotecnologia pode estar presente – afinal, é a essência da palavra!”. Para ser mais específico, “o graduado em Biotecnologia pode atuar em grandes áreas como saúde humana, áreas vegetal, animal, industrial, ambiental e marinha”, explica o professor Pasquali.
E essas possibilidades de atuação, diferente do que muitas pessoas imaginam, não estão apenas dentro das universidades como pesquisador ou professor. “Sempre me imaginei seguindo na carreira acadêmica, mas ao longo da graduação pude ver que existe muita atuação da Biotecnologia além disso”, conta Angelo Angonezi, estudante da UFRGS que também participou da criação do GlyFloat. As possibilidades são infinitas, e empresas alimentícias, têxteis ou mesmo grandes produtores agrícolas sentem cada vez mais a necessidade de desenvolver novas formas de produção mais eficazes e menos nocivas.
Reykla, por exemplo, hoje dedica-se a estudar doenças neurodegenerativas e novos tratamentos a partir de ferramentas da área. Mas, se quisesse, poderia trabalhar na otimização da produção de cerveja até na criação de fármacos recombinantes, como exemplificou Heloísa.
Além desse universo de possibilidades que a Biotecnologia tem a oferecer, de quebra você ainda ganha a chance de se surpreender com uma área fascinante, como conta a estudante: “Queria um curso que me fizesse pensar “que coisa linda, como pode isso acontecer de verdade, como a vida pode existir?!”. De fato, acertei na escolha!”.