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O que é necropolítica e como o conceito pode aparecer no vestibular

Cunhada pelo filósofo Achilles Mbembe, a necropolítica já foi um dos temas de redação da Unicamp

Por Karolina Monte
Atualizado em 19 out 2022, 15h33 - Publicado em 11 out 2022, 20h01

Em maio de 2021, enquanto o mundo ainda estava mergulhado na pandemia de covid-19, o Rio de Janeiro viveu uma das maiores chacinas de sua história. Na favela do Jacarezinho, Zona Norte da cidade, uma operação policial resultou na morte de 27 civis e um policial. O caso repercutiu dentro e fora do país, e o Brasil chegou a ser cobrado pela ONU (Organização das Nações Unidas) por uma investigação imparcial a respeito do ocorrido.

Exatamente um ano depois, em maio de 2022, uma nova operação policial na Vila Cruzeiro, Penha, deixou 23 mortos.

O que os dois casos têm em comum? Além de terem ocorrido em favelas, os mortos eram em sua maioria negros e pobres. Uma pesquisa do Instituto Fogo Cruzado revelou que o número de mortos em chacinas na região metropolitana do Rio de Janeiro dobrou de 2021 para 2022. Ao todo, 255 pessoas perderam suas vidas.

Enquanto os números crescem e as investigações rendem poucas respostas, a percepção para quem fica é de que a sociedade, em especial o Estado, é seletiva em relação aos que escolhe proteger.

O filósofo Achilles Mbembe, de Camarões, resolveu extrapolar essa “percepção” e a levou para dentro da academia. Foi a partir de um resgate histórico, de referências de outros pensadores e reflexões que fundou o conceito de necropolítica, uma forma de explicar porque e como o Estado escolhe quem vai viver e quem vai morrer.

O que é necropolítica

Necropolítica é um conceito filosófico alicerçado sobre a teoria de que as políticas governamentais de Estado buscam controlar quem deve viver ou morrer a partir de aparelhos sociais públicos.

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A ideia foi criada e exposta pela primeira vez em 2003 em um ensaio do filósofo e historiador camaronês Achilles Mbembe. Posteriormente, o ensaio acabou se tornando o livro intitulado “Necropolítica“, lançado em 2019.

Para pensar o conceito de necropolítica, Mbembe baseou-se na teoria da biopolítica de Michel Foucault. Segundo ela, os governos seriam pensados e instrumentalizados para controlar não somente o indivíduo, mas o conjunto deles e como suas vidas serão vividas.

Ou seja, os aparatos políticos serviriam ao biopoder, que governa a vida. A socióloga e pós-doutoranda pela USP, Beatriz Brandão, explica em artigo que “a  ideia de biopolítica se refere a um conjunto de estratégias e mecanismos biológicos que passam a fazer parte das decisões políticas: higiene, alimentação, sexualidade, natalidade, longevidade, costumes, migração. A partir de dispositivos de biopoder, esse controle age com o objetivo de aperfeiçoar a produtividade dos corpos”.

No mesmo texto, a autora explora como o contexto da pandemia do coronavírus deu novos contornos e mais aplicabilidade à biopolítica: agora, tornou-se uma emergência que o Estado controle biologicamente os corpos.

Um outro exemplo de biopoder em sua aplicação prática é a lei de planejamento familiar instaurada na China. Nela, o governo permite que os núcleos familiares tenham apenas três filhos. A justificativa para essa lei é um controle da população.

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Mas qual a diferença entres biopolítica e necropolítca? O professor de Humanidades da Oficina do Estudante, Armando Augusto Raphael, explica que as maiores diferenças entre biopolítica e necropolítca estão na forma como as políticas governamentais incidem sobre a população.

Enquanto a biopolítica de Foucault se atenta às formas de controle dos vivos em um cenário eurocêntrico, a necropolítica de Mbembe nos mostra uma condição de morte”, afirma, destacando que o conceito do filósofo camaronês se dá também em um novo tempo e espaço – mais especificamente no mundo pós-colonial. 

O professor destaca ainda que o Estado controla não apenas quem vive ou morre, mas a forma como se vive e como se morre. Existe um descaso deliberado em situações de vulnerabilidade, em que não há planejamentos para que o contexto seja sanado. Quer um exemplo prático? Ao negar a uma parcela da população condições mínimas de saúde, é como se o governo estivesse a condenando a padecer sem tratamento médico.

“Ou seja, o controle político imposto às populações condenam os indivíduos a uma linha de existência precária e indigna que transita entre a vida e a morte”, afirma o professor da Oficina do Estudante. 

Para que um governo necropolítico se instaure, todo o aparelho estatal é mobilizado para controlar a população por meio da violência. É aí que surgem as práticas de exclusão e perseguição a determinados grupos, que acontecem em termos práticos – como nas ações policiais que acabam em violência – mas também no plano dos discursos, quando é atribuído a pessoas negras, por exemplo, papéis sociais ligados à criminalidade.

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Mas é importante ressaltar que para além das ações violentas do Estado que deliberadamente matam certos grupos sociais, a necropolítica também diz respeito ao controle das possibilidades materiais. A algumas pessoas são negados direitos básicos como acesso à saúde, educação, moradia ou alimentação. Estes são aqueles que o Estado deixa morrer.

Necropolítica e racismo

Segundo o Instituto Sou da Paz, 78% dos assassinados em 2019 eram pessoas negras. Também são os negros que encabeçam as estatísticas de desemprego – a taxa era 78% maior entre eles do que entre os brancos em 2020, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Os jovens negros também foram maioria entre os que mais evadiram da escola em 2019, mostram dados da Pnad Contínua.

O acaso não é capaz de explicar os números, mas a necropolítica, sim.

O racismo e a necropolítica são retroalimentares, ou seja, coexistem um em função do outro. Mas antes de traçar um paralelo entre os dois conceitos, uma breve recapitulação do que é o racismo: em termos mais simples, é a implantação de uma segregação e diferença entre grupos, baseadas puramente em uma hierarquização irracional de etnias.

+ Como o mito da democracia racial perpetua o racismo no Brasil

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A sociedade se vale de ideias racistas para legitimar a necropolítica. Como exemplo, podemos citar a falta de saneamento básico para populações marginalizadas, que, em sua avassaladora maioria, são negras.

E essa relação não é nada recente na História. O professor Armando Raphael recorda alguns momentos históricos em que a necropolítica já era colocada em prática, ainda que o termo não tivesse sido cunhado. As repressões aos quilombos na região de Palmares é um deles, assim como a destruição completa do Arraial do Belo Monte na chamada Guerra de Canudos.

+ Os Sertões de Euclides da Cunha: entenda a Guerra de Canudos

Como pode cair no vestibular

Para a professora Vanessa Bottasso, professora de redação da Oficina do Estudante de Campinas, a regra é clara: ter bons exemplos de necropolítica em mente é até mais importante do que dominar o conceito.

Isso porque é comum que as propostas de redação ou mesmo o enunciado da questão já apresentem essa definição. Portanto, o que fica a cargo do estudante seria a discussão produtiva desse conceito com base na realidade.

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Mas atenção que nem tudo é simples: tão importante quanto saber exemplos do cotidiano é que o estudante saiba como argumentar a partir deles, tanto em temas de redação quanto em questões da prova. “No caso das provas de Língua Portuguesa, é mais provável que caia como parte de questões discursivas”, explica a professora.

Diferentemente das questões objetivas, as questões discursivas avaliam a capacidade do vestibulando de relacionar e sustentar os conceitos propostos com as ideias trazidas na resposta, que também deve ser coerente. Dessa maneira, “uma questão discursiva poderia explorar a interpretação do conceito de necropolítica em relação a outros aspectos ligados à compreensão textual”.

Para praticar

Em 2021, a Comvest (Comissão Permanente para os Vestibulares) inseriu em uma das propostas de redação do vestibular da Unicamp (Universidade de Campinas) o conceito de necropolítica, colocando sua definição por Achilles Mbembe em conjunto com outros textos de apoio ligados à pandemia de covid-19. Dê uma olhada:

Proposta de redação da Unicamp 2021 teve a necropolítica como um dos conceitos que poderiam ser trabalhados.
Proposta de redação da Unicamp 2021 teve a necropolítica como um dos conceitos que poderiam ser trabalhados. (Divulgação/Unicamp)

O que exatamente os textos motivadores propunham era que o vestibulando relacionasse o conceito filosófico de necropoder de Mbembe com exemplos práticos do cotidiano, como o cenário global e as consequências da pandemia do coronavírus, exemplificando através de fotos, trechos de notícias e até quadrinhos.

Para treinar, tente realizar esta proposta. Mas fique atento! Aqui a redação deve ser escrita em formato de diário, gênero textual de caráter mais intimista, com datas entre os registros dos relatos. Neste texto você entende melhor como funcionam os gêneros de redação da Unicamp.

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