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Por que a França é o país europeu que mais sofre com ataques terroristas

Entenda como dois ataques terroristas e falas do presidente Macron desencadeiam manifestações muçulmanas

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 4 nov 2020, 17h32 - Publicado em 4 nov 2020, 16h04
Jovem segura cartaz escrito 'Je suis Charlie' (eu sou Charlie), frase símbolo da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, após o tiroteio em 7 de janeiro de 2015, no qual doze pessoas foram mortas nos escritórios do semanário satírico francês jornal Charlie Hebdo. (Pinterest/Reprodução)
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A França está sofrendo uma escalada do terrorismo e, consequência direta desses ataques, vem observando um aumento do debate sobre liberdade de expressão em 2020.

No dia 16, um professor de uma escola em Conflans-Sainte-Honorine, nos arredores de Paris, foi degolado na rua por um terrorista tchetcheno depois de ter mostrado em uma de suas aulas sobre educação cívica e liberdade de expressão caricaturas do profeta Maomé.

Menos de duas semanas depois, no dia 29, três pessoas foram mortas a facadas dentro de uma catedral na cidade de Nice, no sul da França. Nos dois casos, testemunhas apontam que os autores do ataque repetiam a frase “Deus é maior” em árabe.

O mês de outubro também foi duro para os franceses por causa da pandemia: o país enfrenta uma segunda onda de contágio do novo coronavírus e teve que impor medidas de isolamento.

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Embora estes tenham sido os únicos ataques comprovadamente terroristas na França este ano (ainda está sob investigação o caso de um padre ortodoxo baleado ao sair da igreja), o país tem um longo histórico nessa área, sendo considerada a nação europeia que mais sofre com o problema.

A maior onda de ataques ocorreu em 2015 e 2016, anos em que estádios de futebol, casas de show e até festas de rua acabaram com mortos e pessoas feridas por ataques reivindicados, em sua maioria, por reconhecidas organizações terroristas como a Al Qaeda ou Estado Islâmico.

Um dos mais emblemáticos casos foi o ataque à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015. Na ocasião, três homens armados invadiram a redação e mataram 13 pessoas que trabalhavam lá, em reação às frequentes charges satíricas de Maomé publicadas. A representação da imagem do profeta tem um peso diferente no islamismo. Por isso, mesmo se não fosse no contexto satírico, o uso da imagem de Maomé é, por si só, tida como desrespeitosa e uma blasfêmia.

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O caso do Charlie Hebdo também começou a ser julgado no mês de outubro.  Entenda por que, afinal de contas, os franceses são o alvo mais frequente de ataques terroristas na Europa.

Histórico colonial e percepção sobre a população muçulmana

Durante o neocolonialismo, a França dominou diversos países africanos de maioria muçulmana, como o Marrocos, Tunísia, Guiné, Níger e Argélia. Hoje, a França é também o país europeu com maior proporção de muçulmanos. Há um senso comum que esses fatos facilitam o choque entre culturas na França.

Colonização na África 1880-1913
Colonização na África 1880-1913 (Wikimedia Commons/Reprodução)

No entanto, a grande presença de muçulmanos não pode ser usada como justificativa do maior número de ataques terroristas no país, como enfatizou Cecilia Baeza, professora de Relações Internacionais da Sciences Po Paris, em entrevista ao Nexo.

Ela lembrou que muitos desses ataques são reivindicados por muçulmanos de origens diferentes dos países colonizados pela França e que, por isso, não podem, nem deveriam ser lidos como ações de caráter descolonizador – até porque os autores geralmente fazem questão de pontuar a questão religiosa.

“Talvez, no passado, tenha havido atentados de argelinos, e poderíamos discutir essa relação colonial, mas hoje a questão desse legado está relacionada a outro esquema. O debate sobre a superação do colonialismo passa por uma pauta diferente, de antirracismo, de derrubar estátuas, são outras mobilizações políticas, completamente diferentes”, enfatizou Baeza, esclarecendo por que esses ataques não podem ser lidos como uma luta anticolonialista.

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Além disso, embora em termos demográficos a França abrigue, sim, uma quantidade maior de muçulmanos em relação ao resto do continente, a percepção dos franceses brancos sobre esse número é inflada e tem muita relação com a xenofobia crescente em meio a um contexto de desemprego e recessão. Uma pesquisa realizada no país mostrou que franceses acreditam que muçulmanos representam entre 30 e 40% da população nacional, quando este número não chega, na verdade, a 10%.

Liberdade de expressão e laicidade

“Repito com muita clareza hoje: não cederemos a nada. Nada nunca nos fará parar. Respeitamos todas as diferenças, com espírito de paz. Nunca aceitaremos discurso de ódio. Sempre defenderemos a dignidade humana e os valores universais. Nós continuaremos, professor, nós defenderemos a liberdade que você ensinava tão bem e nós levaremos a laicidade. Nós não renunciaremos às caricaturas e aos desenhos”.

Essas são algumas das frases ditas em diferentes momentos pelo presidente da França Emmanuel Macron ao longo das últimas semanas em relação aos ataques terroristas enfrentados pelo país. A liberdade, que compõe o lema francês “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, herança da Revolução Francesa, não é apenas letra morta ou um slogan para turista ver. Os franceses levam a sério a liberdade de expressão e sua cultura também é marcada pela laicidade do Estado.

A Liberdade Guiando o Povo: Tela do pintor Eugène Delacroix faz alusão à Revolução Liberal de 1830, que prolonga o movimento da Revolução Francesa
A Liberdade Guiando o Povo: Tela do pintor Eugène Delacroix faz alusão à Revolução Liberal de 1830, que prolonga o movimento da Revolução Francesa (© R.M.N./H. Lewandowski - Museu do Louvre/Paris/Reprodução)

Embora a sátira e o “politicamente incorreto” sejam muito mais tolerados na França do que em diversos outros países ocidentais em função dessa ampla liberdade, a liberdade não é um direito irrestrito. Ainda de acordo com a professora da Sciences Po, a legislação francesa impõe o limite do discurso de ódio e de discursos antissemitas, por exemplo. E, para muitos estudiosos e pesquisadores, a liberdade de expressão francesa no que diz respeito a sátiras e publicações contra o islamismo podem, sim, estar cruzando o limite do discurso de ódio.

Islamofobia

Em seu Trabalho de Conclusão de Curso para a Universidade Federal da Bahia, a bacharel em Direito Luciana Soares Neres Rosa de Carvalho falou sobre o assunto na tese “Discurso do ódio e islamofobia: quando a liberdade de expressão gera opressão”. Ela aponta que “embora extremamente relevante para a manutenção da vitalidade democrática, o direito à liberdade de expressão não pode ser exercido em prejuízo da dignidade humana, razão pela qual o discurso do ódio, por incitar a discriminação e o jugo de minorias, não deve ser admitido”.

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Entre as sátiras publicadas no jornal Charlie Hebdo que foram consideradas como potencialmente islamofóbicos estava uma em que o profeta Maomé aparecia com uma bomba escondida sob sua roupa e uma outra em que Aylan Kurdi, o menino sírio refugiado fotografado morto em uma praia, era retratado como um potencial assediador quando adulto.

Em termos práticos, o impacto desses discursos circulantes sobre a população muçulmana pode ser medido, por exemplo, quando se analisa o sistema carcerário e a seletividade penal no país: em entrevista ao Fantástico, a professora de História da USP Arlene Clemesha aponta que cerca de 50% da população carcerária francesa atual são muçulmanos.

Além disso, liberdade de culto religioso também é frequentemente evocada por quem aponta islamofobia no país. Em reação aos últimos ataques, por exemplo, o presidente Macron interditou cerca de 240 locais em toda a França onde ocorriam atividades culturais ou religiosas islâmicas.

O receio, como aponta o repórter Willy Le Devin, do jornal francês Libération, é que a postura dos franceses e do próprio presidente Emmanuel Macron insufle radicais a cometerem ainda mais atentados ou até mesmo fortaleçam movimentos de extrema direita xenofóbicos que crescem em toda a Europa.

Marine Le Pen, deputada francesa e maior representante do partido ultranacionalista Frente Nacional, é uma das grandes críticas à imigração e a presença de muçulmanos no país, e é também uma das vozes que têm ganhado força em meio ao caos das últimas semanas.

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Protestos em países muçulmanos e a geopolítica francesa

As falas do presidente Emmanuel Macron em relação à publicação de charges satíricas e em defesa da irrestrita liberdade de opinião não foram bem recebidas em alguns países do mundo árabe. Paquistão, Bangladesh, Arábia Saudita, Iraque, Kuwait, Qatar e Turquia foram alguns dos países onde centenas de manifestantes foram às ruas com cartazes contra o presidente francês, acusando-o de blasfêmia a islamofobia.

Além das declarações de Macron, a reprodução massiva de charges e desenhos satíricos feitos pelo Charlie Hebdo sobre os muçulmanos ganhou força com as audiências de julgamento do caso no início de outubro, causando revolta entre os praticantes da religião.

Embora em muitos países as manifestações tenham sido espontâneas e surgido entre a população, em outros um pano de fundo geopolítico parece ter ajudado a insuflá-las. A Turquia é um desses casos.

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan está prestes a travar um conflito inclusive comercial com a França, interrompendo as importações do país, devido a uma sátira publicada no Charlie Hebdo. Na imagem, Erdogan aparece erguendo a roupa de uma mulher e exclamando “oh, o profeta!”. Além disso, França e Turquia também se opõem em outro conflito no Mediterrâneo, em que há disputa por controle de recursos naturais entre Grécia e Turquia – sendo que a primeira conta com apoio do governo francês.

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