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A professora de escola pública que teve 64 alunos aprovados em federais

Ione é famosa em Belém por colecionar alunos com altas notas na redação do Enem. Na edição passada, 26 de seus estudantes tiraram mais de 900 pontos

Por Taís Ilhéu
Atualizado em 16 ago 2023, 10h45 - Publicado em 16 ago 2023, 10h03
Professora Ione posa ao lado de seus alunos. Eles mostram as notas alcançadas na redação do Enem 2022
Professora Ione posa ao lado de seus alunos. Eles mostram as notas alcançadas na redação do Enem 2022 (Escola Estadual Albanízia de Oliveira Lima/Reprodução)
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Em 9 de fevereiro deste ano, quando foram divulgadas as notas do Enem 2022, o celular da professora Ione de Jesus Araújo Franco tocava sem parar. Eram seus alunos, eufóricos, contando as notas que haviam tirado na redação, que na última edição teve como tema os desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil. “Eles falavam ‘eu não acredito, achei que tiraria 500, 600’”, relembra a professora. Ione devolvia: “como é que vocês podem me dizer que vão tirar essa nota se trabalharam tanto, se dedicaram tanto?”. 

Para eles, o desempenho era surpreendente. Para a professora, não. Ela conta que todos os anos costuma selecionar, por volta do mês de outubro, os dez melhores textos produzidos no projeto Construção e reconstrução do texto, criado por ela na escola onde dá aulas há treze anos. Em 2022, quando foi fazer a seleção a poucos meses do Enem, percebeu que não tinha dez textos excelentes, mas pelo menos 70. Eram dissertações escritas por alunos que certamente tirariam mais de 700 na redação do Enem – que vale, ao todo, 1000 pontos. E assim foi. 

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No dia 10 de fevereiro, Ione e parte de seus alunos organizaram-se na escadaria da escola para serem fotografados. Na imagem, 61 estudantes sorriem e seguram a nota que alcançaram na redação do Enem 2022, que variam entre 700 e 980. A exceção, relata a professora, foram os alunos que tiraram 680 pontos, mas mesmo estes conquistaram boas vagas nas universidades somando o desempenho em outras disciplinas do exame. Na edição passada, 26 de seus estudantes tiraram mais de 900 pontos na redação, um feito alcançado por apenas 5% dos candidatos.

É uma foto que certamente causaria inveja aos cursinhos e colégios particulares de altas mensalidades em todo o país. Mas a escola onde a professora Ione leciona é a estadual Albanízia de Oliveira Lima, localizada na periferia de Belém, no Pará. 

Construindo e reconstruindo sonhos

Ione Franco é formada em Letras pela UFPA, a Universidade Federal do Pará, e pós-graduada em abordagem textual na área de linguística. No início da carreira, dividia-se entre as escolas particulares e públicas da capital do Pará, mas há 25 anos decidiu dedicar-se exclusivamente à rede pública de ensino. Doze anos mais tarde, começou a dar aulas na Escola Estadual Albanízia de Oliveira Lima, onde está até hoje e pretende se aposentar. Mas a Albanízia que encontrou naquela época era bastante diferente.

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“Descobri que havia, no início, um desinteresse muito grande”, conta a professora ao GUIA DO ESTUDANTE. Ela lembra que, no turno da tarde, os alunos simplesmente pulavam o primeiro horário de aula e chegavam só no segundo. O pouco compromisso andava de mãos dadas com uma profunda desmotivação. A professora relata que, quando perguntava aos estudantes o que pretendiam cursar na faculdade, a maioria sequer cogitava essa possibilidade. Os que ousavam sonhar com uma vaga, normalmente escolhiam carreiras pouco concorridas, já que acreditavam não ter chance de aprovação em cursos como Medicina

estudantes seguram folhas com o curso universitário em que foram aprovados
Alunos da professora Ione comemoram aprovação no vestibular (Escola Estadual Albanízia de Oliveira Lima/facebook/Reprodução)

Uma das razões para isso era de ordem bastante prática: os estudantes tinham muita dificuldade com os conteúdos ensinados na escola, especialmente em redação. Foi então que Ione concebeu um projeto em vigor até hoje, o Construção e Reconstrução do Texto

Percebeu que, para sanar as dificuldades dos alunos e ajudá-los a evoluir na escrita, teria que ensinar da mesma forma que aprendeu quando estava na escola. Primeiro, fazia um diagnóstico para entender as dificuldades de cada estudante, e depois começava um atendimento individualizado. “Eu atendo de 38 a 40 alunos todo santo dia”, conta a professora, que tem, ao todo, 11 turmas na escola.  

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O foco de suas aulas de redação é o texto dissertativo-argumentativo, aquele cobrado no Enem e nos principais vestibulares. E quando ensina os alunos a escrever, o faz do começo ao fim: “é um resgate milimétrico de tudo aquilo que eles não sabem fazer”. Nas aulas, aprendem a fazer separação silábica, consultam o dicionário para pesquisar sinônimos e ampliar o vocabulário, estudam a diferença entre um ponto continuativo e um ponto parágrafo. Até mesmo a caligrafia e a organização do texto no papel são trabalhados. 

O principal, no entanto, é o estímulo à pesquisa. Utilizando o celular – que muitas vezes precisa ser compartilhado já que alguns não têm o aparelho –, os alunos são estimulados a fazerem pesquisas sobre diversos assuntos atuais e de relevância social. “A minha maior observação é que eles não conseguiam produzir porque eles não tinham uma leitura aprofundada e nem interesse a respeito de qualquer assunto”, relata Ione, lembrando que o Enem costuma cobrar justamente uma reflexão acerca dos problemas sociais do país. O que precisavam, concluiu, era ter um posicionamento crítico. 

Mas se engana quem lê esse relato e imagina que as aulas de Ione são sempre dinâmicas ou agitadas. Ela própria conta que os encontros podem ser tediosos, especialmente quando os alunos escrevem e reescrevem seus textos dezenas de vezes – o que, admite, é bastante frequente. “Eles reclamam porque eles reescrevem uma introdução, uma linha do texto, não menos que trinta vezes”. A colher de chá é quando acabam as atividades: então os estudantes podem até ouvir música – o que espanta outros professores da escola, mas é defendido por Ione já que, segundo ela, assim podem adquirir repertório sociocultural.

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Sem nota e sem texto de apoio

O método de Ione chama a atenção – em especial em uma escola pública, onde muitas vezes as salas superlotadas e outras dificuldades se sobressaem. Mas as técnicas de ensino de redação que ela escolhe não aplicar são tão surpreendentes quanto. 

Na contramão do que faz a maior parte dos cursinhos preparatórios para o vestibular, a professora paraense não atribui nota às redações que os estudantes escrevem ao longo do ano. Ela até as corrige seguindo as cinco competências avaliativas do Enem, mas não diz para o aluno qual nota ele tirou em cada critério, e sim quais desvios cometeu e onde pode melhorar. 

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Um outro método que Ione escolheu não seguir é a apresentação de textos de apoio. Os alunos recebem apenas a frase-tema com a proposta de redação, e devem realizar a própria pesquisa, selecionando as informações que consideram mais relevantes sobre o assunto e construindo a partir disso uma argumentação autoral. A ideia é que essas pesquisas se tornem bagagem. Ione defende que no dia do Enem seus alunos serão capazes de ativar essa memória e resgatar o conhecimento de mundo que acumularam ao longo do ano. 

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Médicos, advogados e o que mais quiserem

No início deste ano, pouco depois que as notas do Enem foram divulgadas e a foto dos alunos de Ione viralizou, a professora recebeu uma visita na escola. Quando mirou nos olhos do jovem alto, que se apresentou como Lucas, logo o reconheceu: tinha sido seu aluno anos atrás. “Ele me disse ‘eu vim aqui especialmente lhe parabenizar por esse resultado que teve uma repercussão enorme e lhe dizer que daqui alguns dias eu estarei colando grau em medicina’. Olha que maravilhoso!”, se emociona a professora. 

Hoje, quando Ione repete a pergunta que fazia no início de sua carreira na escola Albanízia, sobre o que os alunos sonham em estudar na universidade, escuta respostas diferentes. “Odontologia, Direito, Letras, Biologia, Zootecnia, Medicina Veterinária”. A professora sempre os lembra de que podem “ocupar qualquer lugar neste mundo”, e com isso em mente – e o árduo trabalho nas aulas – muitos conquistam a tão sonhada vaga na universidade. 

banner com rostos de alunos estampado
Banner instalado em frente à escola mostra os alunos aprovados no vestibular em 2022 (Escola Estadual Albanízia de Oliveira Lima/Reprodução)

Apenas neste ano, 84 alunos da Escola Estadual Albanízia de Oliveira Lima foram aprovados no vestibular. Destes, 64 passaram em universidades federais por meio da nota do Enem. Os números impressionantes ganharam forma nos rostos que estampam um imenso banner na frente da escola, custeado pelos próprios professores. “Como a maioria deles anda de ônibus, passa bem na frente da escola. O mais legal é o depoimento dos pais quando veem a foto do filho lá na frente”. 

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O esforço de Ione e de toda a comunidade escolar, da portaria às merendeiras, fizeram a fama da Albanízia. Todos os anos, filas imensas de egressos de escolas públicas e particulares se formam no dia de matrícula. Tudo para garantir uma vaga na escola da cidade que mais aprova nas universidades. 

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