A proposta de redação da Fuvest 2021 questionou os candidatos se o mundo contemporâneo está fora da ordem. O tema contou com uma coletânea de cinco textos que incluía uma tirinha da Mafalda, que é figura frequente em vestibulares, e um excerto sobre o neoliberalismo, tema de que tratamos no GUIA recentemente. Havia ainda um trecho da música “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso, outro do poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, e uma parte de um discurso da ativista Greta Thunberg sobre as mudanças climáticas.
Segundo professores, foi um tema bem típico da banca, com um estímulo para a visão crítica e autoral do mundo contemporâneo. No manual, a banca não estimula o uso direto dos textos da coletânea na redação, mas eles eram um excelente recurso para entender o recorte do tema e pensar nas questões econômica e ambiental relacionadas à pergunta da proposta.
+ Confira a análise do primeiro e segundo dia da segunda fase da Fuvest
A pedidos do GUIA, a equipe do Grupo Etapa e a da Oficina do Estudante fizeram modelos de redação com o tema proposto na edição de 2021. Os textos reúnem todas competências exigidas pela banca e podem ajudar os estudantes a ter uma ideia do que esperar da nota.
Ordem é progresso?
Caetano Veloso já anunciava que “alguma coisa está fora da ordem” no início da última década do século XX. A canção discutia o Brasil diante da então chamada “nova ordem mundial”. O termo caracteriza o mundo após o fim da Guerra Fria – a desordem anterior –, que nasceu da tensão entre Estados Unidos e União Soviética, vencedores da Segunda Guerra Mundial – a desordem anterior. Trinta anos após a queda do muro de Berlim, é possível afirmar que a “velha ordem mundial” já é uma nova desordem.
Na Economia, a Guerra Fria foi vencida pela bandeira da “liberdade” – empunhada pela mão invisível do mercado – em oposição à bandeira da igualdade – erguida pelo braço forte do Estado. Contudo, a vitória daquela não significou o aniquilamento desta. O chamado neoliberalismo coloca o individual acima do coletivo e essa soma de vários indivíduos – multiplicada pelas tecnologias de informação e comunicação – intensificou, neste século, para além da Economia, importantes tensões sociais e ambientais.
Por um lado, paradoxalmente, essas tão modernas tecnologias disseminam, em vozes conservadoras, valores medievais como movimento terraplanista, antivacinas e demais negacionismos. Por outro, observa-se intensa e crescente mobilização coletiva em torno de variadas questões sociais, como raça, etnia, religião, gênero – as chamadas pautas identitárias. Mas não só de indivíduo se faz o mundo contemporâneo. A principal discussão é coletiva.
O século XXI foi inaugurado com o predomínio de um sistema de desenvolvimento econômico extrativista e predador dos recursos naturais. A luta pela preservação ambiental para que não se substraia a palavra “futuro” dos nossos dicionários ganha o reforço das redes sociais que ecoam a Ecologia, em todos os idiomas da Babel. Catástrofes como tsunamis na Ásia ou a pandemia do coronavírus são respostas da natureza a perguntas quem nem sempre são feitas.
Mas a recente pandemia forçou o mundo contemporâneo a se perguntar. Já não basta perguntar, como o profético Caetano há trinta anos, se “alguma coisa está fora da ordem”. Muita coisa está. A partir dessa constatação, é hora de começar a “ressetar” a “Máquina do mundo”, que Drummond herdou de Camões e nos legou.
Coordenação de Português do Grupo Etapa
*texto produzido com base em impressões dos alunos
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Planeta Terra, colônia de exploração
Em 2019, Greta Thunberg fez um discurso chocante em Davos sobre a catástrofe climática que ameaça o planeta. Contrariando os clichês sobre como os adultos devem agir com as novas gerações, a jovem afirmou: “eu não quero a sua esperança. Eu não quero que vocês estejam esperançosos”. Evidentemente, como ativista, Greta quer ter esperanças, mas não o falso otimismo – ou o negacionismo – que governos e empresas vêm pregando. Para que haja esperança real, é necessário que haja, antes de tudo, o reconhecimento de que o mundo está fora da ordem; em outras palavras, de que, como diz Greta, “a casa está pegando fogo”, e que ações rápidas e efetivas devem ser tomadas para que o planeta seja salvo.
A destruição do meio ambiente em nome do lucro remonta aos primórdios do capitalismo. Safatle afirma, em “Governar é produzir incêndios”, que existe no Brasil uma herança colonial na qual a destruição das florestas é comparável à destruição que a metrópole levou a cabo contra os povos que aqui habitavam. Assim como os incêndios são uma forma de tornar a terra “produtiva”, a quase aniquilação dos povos nativos – que foram aculturados, escravizados e dizimados – é, analogamente, uma forma de dominação e de exploração. É indissociável, desse modo, a relação entre a exploração do meio ambiente e o contexto político-econômico, pois a dominação da terra é também um projeto de dominação sociopolítica.
Não à toa, a relação entre metrópole e colônia apontada por Safatle pode ser vista como um comportamento que antecipa o contexto neoliberal vigente mundialmente: não só no Brasil como em outros países, empresas e governos destroem o planeta – apesar de todos os alarmes de cientistas e de ativistas – em nome do lucro, de modo irresponsável e insustentável. Essa, podemos dizer, é a ordem imposta pelo neoliberalismo. Assim como os incêndios na Amazônia servem ao agronegócio e à exploração ilegal de madeira, dezenas de empresas ao redor do mundo emitem toneladas de gases tóxicos na atmosfera todos os anos, o que contribui para o aquecimento global e para a catástrofe ambiental. Dessa maneira, é impossível dissociar no mundo contemporâneo a exploração da natureza do neoliberalismo, pois o crescimento econômico, ao ser a base da ordem desse sistema, também está acima da preservação do planeta.
No neoliberalismo, portanto, pode-se concluir que o que é compreendido como ordem é o modo como empresas e governos tratam o mundo como uma imensa colônia de exploração. É por esse motivo que discursos como o de Greta Thunberg são tão importantes, pois eles não só apontam para a desordem dentro da ordem aparente, como também evidenciam como é difícil para o povo saber algo que, de certa forma, todos já sabem: que o mundo está fora de lugar e que o planeta irá ser destruído caso as emissões de gases tóxicos não sejam interrompidas, ou as queimadas na Amazônia não sejam combatidas. O desafio é insistir para que essas ações sejam tomadas, ainda que elas custem o lucro de empresas e governos; afinal, essa conta será paga com a venda da nossa própria casa, e aqueles que lucraram com essa venda não estarão mais entre nós quando o fogo terminar de consumi-la.
Elisa Pagan, corretora de redação do curso pré-vestibular da Oficina do Estudante de Campinas (SP)