Violência política: como ela se manifesta e quem são as vítimas
Qualquer tipo de ameaça à democracia - seja nas eleições ou durante o mandato - é violência política, que já fez 120 vítimas só em 2023
Um homem com chapéu de fazendeiro, bigode e ares de coronel arrasta, por uma corda, outro vestido de maneira simples – às vezes representado até com orelhas de burro –, que deposita seu voto de papel em uma urna. Quem nunca se deparou com essa imagem em um livro de História? O chamado “voto de cabresto” foi uma prática disseminada na República Velha e exemplifica, entre muitas outras coisas, como a violência política faz parte da história do país há séculos.
Entre eleições e ditaduras, governos mais e menos autoritários, essa segue sendo uma marca da forma de se fazer política por aqui: uma violência que assume diferentes formas, atingindo eleitores e ativistas, perseguindo opositores, ameaçando a lisura do processo eleitoral e, em todos os casos, colocando em risco a democracia.
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“A violência política é um conjunto de instrumentos e recursos que são utilizados por meio de força ou poder para causar danos, obter vantagens, violar direitos com fins políticos e, principalmente, afastar alguns “corpos” dos espaços de poder e decisão” define Gisele Barbieri, coordenadora de incidência política da Terra de Direitos. A organização da sociedade civil publicou dois grandes estudos a respeito da violência política no Brasil, e alertou para o recrudescimento dela. O levantamento mais recente mostra que, até 2018, uma pessoa era vítima desta violência a cada 8 dias. Em 2022, passou a ser registrado um caso a cada 27 horas.
As faces da violência política
Alguns acontecimentos emblemáticos também ajudaram a colocar o problema em evidência. Em 14 de março de 2018, a vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, foi assassinada a tiros dentro de seu carro no centro da cidade. Mais de cinco anos depois, o crime ainda chama a atenção pela inércia na investigação – os mandantes ainda não foram descobertos e punidos.
O assassinato de Marielle, no entanto, está longe de ser um ponto fora da curva. A maior parte dos assassinatos de políticos no país se dá no âmbito municipal. Mulheres negras, como ela, também representam 23% das vítimas de violência política no Brasil. Além disso, parlamentares negros, mulheres, LGBTQIA+ e defensores dos direitos humanos são os que mais sofrem de violência política e eleitoral de forma reincidente – ou seja, repetidamente. E elas ocorrem das mais variadas formas.
Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, a governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSDB), corrige com uma caneta a placa que identificava seu assento no Senado Federal durante uma audiência pública. Ela acrescentou um “a” ao final de “governador”. “Acontece o tempo inteiro. Além da gente ser barrada, chama a gente de deputado, de prefeito, de governador, como se isso fosse natural. Como que se coloca lá o nome de Raquel e governador?”, disse em entrevista ao GloboNews na ocasião.
A governadora identificou o episódio como expressão do “machismo estrutural na política brasileira”, mas ele também tem outro nome: violência política. “Categorizar a violência política é importante porque, em muitas das vezes, ela se revela nas sutilezas”, explica Barbiere, da Terra de Direitos. Segundo ela, mulheres – em especial negras e transexuais – são as maiores vítimas dessas microagressões, que acabam impactando o exercício dos seus cargos. É o que ocorreu com seis deputadas federais que são alvo de pedido de cassação de seus mandatos por seus pronunciamentos contra o Marco Temporal na Câmara.
Também é o caso da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que foi vítima de transfobia durante uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito). O agressor, deputado federal Abilio Brunini (PL-MT), agora é alvo de um pedido de investigação não apenas por transfobia, mas também por violência política de gênero, já que o episódio foi vinculado à atuação política da deputada.
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Na maioria das vezes, no entanto, a violência política é mais notada quando aparece de forma escancarada, fora das vias institucionais e na forma de agressões, ameaças e até assassinatos. São episódios que acontecem com frequência ainda maior durante as eleições – e, neste contexto, passam a ser categorizados também como violência eleitoral.
Violência eleitoral: um ciclo sem fim
“É um tipo específico de violência política cujo propósito é influenciar o processo eleitoral de diferentes maneiras”, explica Felipe Borba, coordenador do Grupo de Investigação Eleitoral (GIEL) da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), a respeito da violência eleitoral. Essa influência a que Borba se refere pode ser, por exemplo, impedir eleitores de comparecerem às urnas e forçá-los a mudar o voto em função de alguma ameaça. Ou então inibir candidatos de participarem das eleições e até de tomarem posse.
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Uma outra característica da violência eleitoral é que ela é cíclica: costuma ficar em um patamar mais estável nas épocas em que não ocorrem eleições, mas às vésperas do pleito registra um aumento. Os casos atingem o pico na semana da votação, e depois começam gradativamente a cair – até chegar a próxima disputa e tudo recomeçar. Um número da última eleição ajuda a ilustrar melhor. Entre julho e setembro de 2022, meses marcados pela campanha do primeiro turno, foram registrados 212 casos de violência eleitoral. Foi um aumento de 110% em relação ao trimestre anterior, quando a votação estava mais distante.
Essa também foi uma disputa simbólica em relação à violência pós-eleitoral, aquela que acontece logo depois dos candidatos serem eleitos. Em 8 de janeiro deste ano, uma semana após o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tomar posse, centenas de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram a sede dos Três Poderes em Brasília, defendendo uma intervenção militar. Para o pesquisador da Unirio, trata-se, assim como a Invasão do Capitólio nos Estados Unidos, de uma flagrante violência pós-eleitoral.
Embora os acontecimentos associados às eleições estaduais e presidenciais ganhem mais projeção, um dado curioso levantado por estudiosos do tema é que as eleições municipais tendem a ser muito mais violentas. É claro que o número de prefeitos e vereadores é muito maior, mas isso não explica o fenômeno por completo. Para Borba, nas cidades – em especial nas pequenas – e disputa pelo poder é muito mais local. E, por isso, mais letal.
“Para você ter uma ideia na eleição passada [para presidente] nenhum candidato morreu”, explica o coordenador do GIEL. “O círculo municipal é mais violento no sentido de ter mais homicídio”. Entre janeiro e junho de 2023, 96 vereadores, 22 prefeitos e dois vice-prefeitos sofreram algum tipo de violência no país.
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As vítimas da violência política e eleitoral
O grupo de estudos da Unirio considera que a violência eleitoral pode ser classificada em cinco modalidades: agressão, ameaça, atentado, homicídio e sequestro. Os homens brancos, de meia idade e cisgênero, que formam a maioria da classe política, também são a maioria das vítimas de violência no geral, mas não são os mais suscetíveis a serem assassinados.
“O que a gente entende disso é que essa violência de homicídio, de certo, modo reproduz a violência da sociedade brasileira. Atinge sobretudo homens negros, de baixa renda e de baixa escolaridade”, concluí Borba.
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Já quando o assunto é violência política como um todo, e não apenas a eleitoral, novos recortes entram em jogo. As mulheres, por exemplo, embora sofram menos atentados e assassinatos, são a maioria das vítimas de ameaças e especialmente de ofensas, segundo o último relatório da Terra de Direitos. Elas também estão vulneráveis à violência sexual: em 2020, por exemplo, a então deputada estadual Isa Penna teve os seios apalpados pelo ex-deputado Fernando Cury durante uma sessão na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).
Por fim, o pesquisador da Unirio lembra que outros grupos além dos candidatos e políticos eleitos também estão suscetíveis a sofrer violência política e eleitoral, como militantes políticos, sindicalistas e até mesmo jornalistas.
Prevenção, investigação e punição: os caminhos para combater a violência política
Quem perpetua a violência política? Tanto para Felipe Borba, do GIEL, quanto para Gisele Barbiere, da Terra de Direitos, o combate a este tipo de violência começa por esta pergunta. É preciso identificar os culpados, tanto pelos crimes isolados quanto pela disseminação de discursos violentos.
Borba acredita que a violência está associada, entre outros fatores, à ascensão de uma política intolerante – e que essa intolerância parte de cima para baixo, das elites políticas. “Como um candidato ao vivo diz que vai metralhar alguém? Isso vai gerando uma intolerância na sociedade. É um acordo que precisa ser feito entre eles, em Brasília”.
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Para além disso, em termos práticos, o pesquisador defende que os crimes deveriam ser apurados e os culpados devidamente punidos – o que, a exemplo do assassinato de Marielle, quase nunca ocorre. Segundo Borba, a criação de um núcleo na Polícia Federal e de delegacias especializadas no combate à violência política é um caminho.
Gisele Barbiere também chama a atenção para os avanços e limitações das legislações que existem sobre o tema. Ela recorda da Lei Nº 243, aprovada em 2012 na Bolívia, que prevê sanções aos agressores e apoio às mulheres vítimas de violência política. Outros países como Argentina, Uruguai, Equador e Colômbia também tentam avançar neste sentido. Segundo Barbiere, o histórico de Ditaduras Militares na América Latina alimenta um sentimento de impunidade na sociedade, o que, junto de outros fatores como o crime organizado, ajuda a explicar a violência política nestes países.
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Já no Brasil, a Lei 14.192, aprovada há dois anos, versa sobre o combate à violência política contra as mulheres e representou um grande passo, mas falta avançar em relação à prevenção e apoio às vítimas.
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